AZUL POR CENTO

Taxa de desemprego chega a 14,7...Diziam as letras garrafais em forte tom de azul da manchete. Azul como o céu das seis da manhã que fitava do ponto do ônibus. A máscara de pano, mais ou menos bem posicionada sobre o rosto favorecia a passagem do bafejo morno para as lentes dos óculos, emprestando, momentaneamente ao dia ensolarado, cores de neblina.

Apertava constantemente o botão de ligar e desligar do telefone. Duas chamadas perdidas. Estar nas ruas havia sido mais tranquilo. O marido de Cidinha tinha morrido três dias antes...

Ajeitou a máscara. O ônibus estava chegando.

Atrás de si entraram mais oito. Reconheceu o filho de Sueli, tinha perdido o emprego na semana passada. Tanto lugar fechado, quase ninguém mais contratando.

Procurou seu lugar mais ao fundo. Deus o livre sentar perto de gente com esse diabo desse vírus circulando por aí...

Ao primeiro ronco da partida do ônibus, recostou a cabeça próximo a janela. O céu estava sem uma única nuvem, um azulão bonito quanto a noticia sobre o desemprego.

“14,7%”, dizia-se um dos piores índices da história, respirou fundo, tivera crise noite passada, não ia querer surtar no meio de um ônibus ou quase sufocar com a máscara.

Tornou a ligar o celular. Três chamadas perdidas. Duas da mãe, uma de Wellington. Wellington ficara de arrumar alguma coisa. Iam dividir casa. Dormir junto. O pequeno tinha sido um acidente para fazer gosto ao pai. A moça tinha aparecido na sua porta com ele no colo. Não tinha tido coragem de jogar o pequeno em algum abrigo. Com muito custo a mãe aceitou ajudar. O pai saiu de casa, ele usava uma camisa azul...Azul igual ao céu, ao céu e ao texto das noticias. 14,7%.

A carne tinha ficado cara. O arroz, nem se falava. Mas ainda tinha quem gritasse “Mito! Mito!” por aí. Inclusive o filho de Sueli, ostentava orgulhoso sua camisa verde amarela, até o dia em que a demissão veio.

Um solavanco, tornou a ligar o celular. Dez pras sete da manhã, quisesse Deus, ia dar tempo de chegar para a entrevista. Quisesse Deus ia conseguir o trabalho. Botar comida na mesa, dar uma vida melhor ao pequeno.

“Abriu concurso, tu viu?!” lembrou da mãe na mesa de jantar, concurso era bom, trabalho estável, mas ao mesmo tempo pensava em Wellington dizendo “tudo carta marcada...”

O ônibus tornou a parar. Entrou mais gente. Respirou fundo, rezou para que ninguém viesse para aqueles lados do ônibus. Ninguém veio. Tornou a ligar o celular. Quatro chamadas perdidas.

Era a quinta ou a sexta entrevista que fazia no passar dos meses. Ninguém tinha ligado de volta. Só Wellington...

O ônibus parou no ponto. Meio trecho andando até a dita empresa. Prédio grande, bonito. Com uma ampla fachada azul. Azul da cor do céu, da cor das notícias, da cor dos catorze por cento.

Mostrou currículo, mandaram se sentar de novo. O tapete sob seus pés tinha um desenho quadriculado. Quadriculado em tons de azul.

Chamaram o primeiro candidato. O segundo...

Outra ligação perdida. Ouviu seu nome.

Perguntas rápidas. Gaguejou um tanto. Falou outro tanto. Tudo na sala era azul.

Azul da cor do céu. Azul da cor das más notícias.

A moça sorriu. Iam entrar em contato.

Quando saiu, o céu, antes imaculado, começou a se cobrir de nuvens. Nuvens alvas e cinzentas. O azul estava manchado.

Outra ligação. Era a mãe. Dessa vez atendeu.

Ia precisar voltando andando para casa. O pequeno tivera febre.

Olhou o celular. Iam entrar em contato. Voltou andando a passo lento.

Um de catorze por cento, sob um céu azul e manchado.

Doug A Souza
Enviado por Doug A Souza em 07/07/2021
Código do texto: T7294921
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