A aposta

Nos tempos de formação na Escola de Aprendizes - Marinheiros, eu era afeito a grandes emoções como por exemplo: faltar repetidas vezes ao treinamento físico – militar; forjar doenças para ser dispensado de serviço, principalmente o de rancho; e pular o muro. Tudo isso, se flagrado, daria graves punições.

Mas eu não satisfeito com o que aprontava, gostava de fazer algo fruto de observação e estratégia: sair, estando de serviço na sala de estado, para ficar com minha namorada. Porém, logo vi que deveria contar apenas comigo e não divulgar a ninguém minhas intenções; quaisquer que fossem meus colegas de turma. O plano, que comecei bolando ainda aprendiz, carreguei como segredo de estado – em minha mente apenas – um mistério guardado a sete chaves.

Fui, inicialmente, verificar a escala de serviço dos sargentos contramestres. Era cinco por um. Evitei a todo custo fazer esta arriscada tentativa com sargento Solstício, primeiro cão fuzileiro naval e infante, a quem nutria um respeito enorme (pela carreira e inteligência). Procurei na lista um menos arisco à disciplina para fazer de vítima e, após observação minuciosa, encontrei: loquaz, cheio de bravatas, arrastando prepotência com os alunos. Era o Esfíncter, natural do interior do estado, um segundo cão de Sobral, terra de gente presunçosa, no conceito dos próprios cearenses.

Quando finalmente cruzamos nossos caminhos; ele, contramestre e eu seu auxiliar, no quarto de hora de oito às doze da manhã. Resolvi dar o bote. Demos o serviço e , ao cabo, fui ao rancho para almoçar. A comida, rotineira de todos nós os alunos era a conhecidíssima carne moída com batatas. Alimentei – me e fui para o alojamento. Lá chegando, vi um paraense citando seus feitos: que havia pulado o muro diversas vezes; que não ia ao estudo obrigatório para namorar sua “boyzinha” (a namorada, ou , então, menina nova e bonita no jargão marinheiro) e que ainda desafiava qualquer um de nós a repetir suas façanhas. Eu, que já havia falsificado minha identidade com plastificação e outros por menores, resolvi medir forças. Antes, pedi a presença de uma liderança dos cariocas, o Hérbson, natural do morro do alemão na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

Reuni todos os dois quartos de serviços de folga no horário (para ter testemunhas em caso de traição do paraense) e fiz a proposta. Este não acreditou no sucesso do que lhe propunha, achou loucura e cegamente apostou seu pagamento contra o meu. Faltava uma semana para recebermos, o que adoçou a ambição do nortista. O fluminense achou algo escandaloso e arriscado mas se propôs a me ajudar. Manteve a aposta em sigilo e pediu para que eu me apressasse, pois o licenciado das treze horas e trinta minutos estava para ser tocado de apito no boca de ferro. Quem estava de folga já se aprontava para sair. Troquei o uniforme, fui para a formatura, passei pela inspeção, prestei continência à bandeira e me dirigi ao portão. Deu tudo certo. As apostas paralelas corriam soltas pelo alojamento.

Minha namorada estranhou e me inquiriu:

- O faz aqui? Você não está de serviço, não? – Eu disse que

não se preocupasse e fomos namorar até as dezoito e trinta. Dado o horário (que passou depressa, por sinal !) despedi-me e fui embora em direção ao portão principal. Para a minha surpresa, algo inopinado: o sobralense Esfíncter estava conversando com o contramestre do horário de quatro da tarde às oito da noite, a quem renderia. Estaquei olhei para o sentinela, conhecido da aposta e que havia investido uns trocadinhos a meu favor. Gesticulei para que observasse, sem que o segundo cão percebesse, num momento em que ele entrasse na sala de estado ou olhasse na direção do alojamento, dando as costas para o portão. O campanha fez sinal e eu, me encostando à parede, passei pelos fundos do recinto onde estavam os sargentos. A partir daí, a uma distância segura. Dei a volta e, passando pelo auditório e a piscina, dirigi - me ao alojamento. Nunca corri tanto e, a sorte estava ao meu favor, porque fui obrigado a passar em frente à praça d’armas, onde fica o oficial de serviço.

A galera, enlouquecida, vibrava pelo meu sucesso. Enquanto os perdedores, ficavam sem acreditar no que viam, já contabilizando suas perdas, num silêncio sepulcral, davam – se por vencidos. O paraense, incréu queria descer. O carioca Hérbson e a turma, na sua maioria, não o deixaram. Aquele se viu obrigado a ficar, pois logo, logo foi feito um corredor polonês. Estavam todos com a toalha molhada e com um nó nas pontas.

- Você não banque o safado, deixe que ele venha...assisti tudo e vai ter, “mermão” que aturar as consequências...

Já quase desfalecido, cheguei e foi motivo de aplauso no alojamento inteiro, eu já estava totalmente encharcado de suor. Peguei meu cheque e o do apostador que, desesperado, disse – me que a família, da periferia de Belém, morando numa palafita, iria ficar um mês sem mantimentos; ele sem revelar na seleção, era arrimo, sustentava a todos com o salário, ou antes, a ajuda de custo, ganha mensalmente na escola... ainda ameaçou bater com a língua nos dentes, o que trouxe uma revolta total. Tomou um surra para cem, sozinho, enquanto eu tomava um banho de pia, com a anuência do plantão do banheiro. Puxei toda a água, preparei-me para colocar o uniforme mescla, fui à chamada das dezenove e meia e assumi o serviço com o sargento Esfíncter até a meia noite: depois de rendido, fui dormir o sono dos justos, só acordando depois do TFM, na hora do banho e uniforme para o café da manhã. Foi o presente que ganhei dos amigos. A quem tanto comoção provoquei, sejam quais fossem as procedências.

Moysés Severo
Enviado por Moysés Severo em 20/06/2021
Reeditado em 26/06/2021
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