Sobretudo cansaço.

Quando João Gilberto morreu, eu desesperadamente escrevi algo que nem sei o que era. Geralmente chamo de crônica quando não posso dar outro nome. Ele faria 90 anos ontem. Só hoje estou lembrando. Um fato curioso de minha memória é que eu sempre acho que tudo de marcante aconteceu literalmente ontem. Mas eu nunca lembro do dia anterior. Amanhã também não lembrarei do que fiz hoje. O pior do tempo é que ele se arrasta em longas horas e em infinitos anos, mas também corre nos deixando lá atrás com a poeira nos olhos. A poeira com certeza é a vida.

Falei que amanhã não lembraria do dia de hoje. Más notícias: provavelmente lembrarei por muito tempo. Isso me fez recordar que já me chamaram de fria, de dura. Chega a ser engraçado. Eu mantenho a postura, mas meu coração sempre está em milhões de estilhaços. Se ser frio é não chorar para que não me perguntem o porquê, eu sou um adorável pinguim triste. Quem sofre depois é o travesseiro. Até nisso eu fracasso, não consigo ser apática como às vezes deveria ser. Mas taí o ponto: ninguém deveria. Eu entendo que pode ser um mecanismo de defesa, só que eu nasci sem. Sou exposta demais. Paradoxalmente, existem coisas que eu escondi em um lugar tão profundo que não tenho mais acesso. Eu me perco de mim o tempo todo, eu me despedaço e então não me encontro mais. Outras vezes eu sinto que alimento as pessoas com esses pedaços, daí o que sobra depois? Nada. E o nada é o vazio. E o vazio é aquilo que me preenche. Eu não quero mais isso. Também sei que posso ser intragável, por isso essas partes difíceis de engolir retornam ao meu corpo do pior jeito possível. De qualquer maneira, quem limpa a bagunça sou eu.

Eu gosto muito de imaginar porque viver está sendo impossível. A imaginação é aquilo que me salva, mas também pode me condenar. É uma praga do bem, um mal necessário, uma parte de mim que não posso fingir que não existe. Eu só existo porque penso. Você só existe porque eu penso em você inclusive quando não estou pensando. Posso provar: eu estava escrevendo para João Gilberto.

Anita Maria
Enviado por Anita Maria em 12/06/2021
Código do texto: T7276855
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