O que há para celebrar?

Hoje, dia 31 de março, marca 57 anos do período mais obscuro da nossa história. Somos uma frágil nação que parece ter um deleite por ditaduras. Nossa formação histórica é um capítulo desolador da história humana: fomos colonizados pelos portugueses, que pilharam nossas riquezas naturais, culturais e humanas. Massacramos os povos indígenas, trouxemos os escravizados africanos, nós nos construímos como nação independente com os nossos algozes no poder. A república veio a partir de um golpe. A primeira ditadura veio com um golpe. A república novamente veio em um golpe. E a segunda ditadura, pior que a primeira, veio de uma ameaça irreal de comunismo que serviu como uma cortina de fumaça para algo mais sombrio – e mais um golpe. Foram 21 anos de repressão, tortura, censura, morte.

Queria entender como alguém pode querer celebrar algo tão cruel e desumano que vivido num passado não muito distante – eu não nasci nessa época, mas nem por isso deixo de sentir uma dor imensa ao pensar em tudo o que as pessoas passaram nesse período. É mórbido imaginar que em meio a maior pandemia dos últimos 100 anos alguém queira comemorar o aniversário de uma ditadura.

Bem, há quem queira. E acredite: são muitos. Como eu sempre penso ao assistir o jornal: o Brasil não é para amadores. E não é mesmo. O nosso presidente é uma grande fã da ditadura. Ele deixou bem claro ao exaltar o torturador General Ustra em pleno Congresso Nacional, em 2016, ao votar a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, uma vítima da ditadura militar de 1964. É uma cena que me deixou perturbada com tamanha crueldade. Desde então, sempre que tem oportunidade, ele exalta a ditadura.

Não obstante, desde que assumiu a presidência, em 2019, ele luta pelo direito de celebrar o que chama de revolução de 1964. E em 2021, ele conseguiu. No dia 17 de março, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) derrubou uma decisão que impedia o governo federal de celebrar a ditadura militar de 1964. Por quatro votos a um, os desembargadores da Terceira Turma concederam o direito de homenagear esse período.

Eis a questão: o que celebrar realmente? Olhando para o nosso presente, batemos um novo recorde no número de mortes pelo novo coronavírus: 3.780 mortes em 24h e já ultrapassamos 317 mil mortos desde o início da pandemia no Brasil. Além disso, o desemprego aumentou e desde segunda-feira, dia 29, o governo federal parece estar passando por um cisão, em que ministros saíram, foram substituídos e o alto comando das Forças Armadas foram dispensados após a troca do Ministro da Defesa – algo sem precedente. Há algo acontecendo nos bastidores de Brasília e o impacto pode ser devastador.

Olhando para o passado, o que há para celebrar? O regime militar iniciado em 1964 e que durou até 1985 foi um período em que os direitos políticos foram suspensos; os parlamentares tiveram seus mandatos cassados e muitos foram presos, torturados e mortos; eleições indiretas para governadores; dissolução de todos os partidos políticos e a criação de duas agremiações: a governanista e a oposição consentida; o Congresso Nacional foi fechado, assim como universidades e jornais; a instituição do Ato Institucional nº 05 (AI-5) autorizou a tortura e a morte dos opositores do regime; proibição de greves e controle dos salários; militares no poder – esse é apenas um rol exemplificativo. Houve crescimento econômico, mas esse não durou muito. No período da redemocratização, estávamos em uma grave crise econômica.

O que há para celebrar? O Ministro da Defesa, Braga Netto, em seu primeiro ato público, publicou uma ordem do dia alusiva ao aniversário de 57 anos do golpe militar de 1964, que ele chama de movimento 31 de março de 1964. Ele afirmou que “as Forças Armadas assumiram a responsabilidade de pacificar e reorganizar o país para garantir as liberdades democráticas que temos hoje.” Eu acho que esse povo vive no país das maravilhas e anda bebendo o chá servido pelo coelho. O que não tivemos no período da ditadura foi democracia, liberdade, vida.

Em uma pesquisa do Datafolha, de abril de 2019, mostrou que 57% da população não concordava com a comemoração do regime militar de 1964; esse período deveria ser desprezado. Outros 36% admitiram uma comemoração da data. Aqueles que acham que o dia 31 de março merece celebração, eu sugiro que voltem às aulas de história. Se repudiamos o que foi feito às vítimas do Holocausto, por que não temos o mesmo repúdio ao que foi feito durante os 21 anos de ditadura militar? Brasileiros foram exilados, torturados e mortos. Os corpos desses cidadãos não foram recuperados. As famílias até hoje sofrem por não enterrarem seus mortos. Se a Lei da Anistia veio para trazer esquecimento dos crimes cometidos nesse período, por que devemos celebrar algo que deve ficar esquecido? Se for para lembrar, que seja para repudiar. Se for para lembrar, que seja para nunca mais se repetir.

Minha sugestão é que o dia 31 de março sirva para que nunca mais seja esquecido: ditadura não se celebra, se combate; não foi revolução, foi golpe; tortura é crime contra a humanidade e não se esquece; censura é o silêncio dos bons; os mortos desse período merecem descanso e os vivos merecem respeito a sua dor. Como disse Ulysses Guimarães, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

O que há para celebrar? Que esse período acabou. Viva a democracia todo dia, e mais ainda neste dia 31 de março.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 31/03/2021
Reeditado em 31/03/2021
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