O DIA V

Não é apenas o documento de identidade, o comprovante de residência e o CPF. Afinal, eu não vou simplesmente dar uma volta na praça ou fazer exame de próstata. O momento exige muito mais que isso e vai entrar para a história. Por isso já engraxei os sapatos e separei minha melhor roupa, escovando cada peça. Só não vou de terno e gravata porque podem atrapalhar os movimentos na hora H.

Agora vou cortar o cabelo (ou o que restou dele), fazer a barba, aparar milimetricamente o bigode e conferir, no espelho, como ficaram os meus 74 anos depois de um ano de confinamento e alguns quilinhos a mais. Se estão bem distribuídos, as rugas bem acomodadas, sobretudo nos braços, que vão merecer um hidratante depois do banho para amenizar o ressecamento da pele.

Afinal, o alvo de toda essa preparação são os braços. Que durante todo esse período ficaram impedidos de abraçar e acolher amigos, amores e parentes. Braços quase inúteis, amorfos, mecânicos, condenados a arrastar os móveis da casa e recolher o lixo do dia. Braços sonâmbulos, abrindo de noite a porta da geladeira porque não podem abrir a porta da rua.

Braços caídos, que agora vão se levantar, livres, fortes, pujantes, para receberem a primeira dose da vacina salvadora. Esquerdo ou direito, tanto faz. A vacina não tem ideologia nem preconceito. Perante ela todos os braços são iguais e têm a mesma cor. Além da salvação, ela nos injeta também a mensagem da igualdade e do amor. Tudo numa só agulhada (ou duas).

Não, não é apenas o documento de identidade, o comprovante de residência e o CPF. É muito mais. É também uma alma nova, vestida de esperança. Porque esse é um dia inesquecível.

Se ainda me lembro do dia em que recebi a primeira comunhão, o primeiro castigo da professora e o primeiro beijo da namorada, também vou-me lembrar para sempre do dia em que recebi a primeira dose contra a Covid-19.

Porque esse é o dia V. Dia da Vacina. Dia da Vida.

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 25/03/2021
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