ABRINDO A VENDA

ABRINDO A VENDA

A experiência de abrir a “venda” do meu pai todos os dias às 07h00minhrs da manhã revelou-se muito interessante. Considero-me tímido e, adolescente, era muito mais. Timidez, a meu ver, nem sempre significa calar-se ou ocultar suas opiniões. Mais que isso, é uma espécie de autocensura das palavras que percorrem o caminho do cérebro até as cordas vocais e, no momento de emitir sua opinião, você engole o que iria falar. Nesse momento, o ato de suprimir suas palavras chega a doer fisicamente, como um alimento que desce atravessado. Esse desconforto tem como conseqüência outros juízos deglutidos, e o tímido vai se calando ante muitas situações nas quais sua opinião seria fundamental como contribuição para realmente resolver sérios problemas, evitar situações muitas vezes desastrosas sem possibilidade de retorno. E o momento perdido não volta, tanto nos relacionamentos quanto na vida prática. Pior ainda é sensação de reconhecer que devia ter se pronunciado. Esse “material” desce goela abaixo e incomoda, às vezes pela vida toda. Em contrapartida, os que falam demais acabam falando bobagens. Portanto, reconhecer quando falar e quando calar é imprescindível.

E a venda do meu pai, que tem a ver com isso? Abrir as portas de enrolar era, a cada dia, uma nova experiência, como se eu transitasse da escuridão para a luz. O interior do armazém era escuro e, em cada uma das três portas, a claridade ia entrando. Eu me expunha ao mundo exterior e ficava imaginando a visão de quem estivesse do lado de fora. Uma porta subir e aparecer uma pessoa, de repente, com aquele bastão com um gancho na extremidade e atrás dela, um balcão, prateleiras, e, sobre um estrado, sacos de aniagem com variedades de feijão, arroz, farinha, fubá, milho, etc. Havia um local azulejado para insumos de feijoada, com carnes salgadas, toucinho (hoje só se fala bacon, beicon). Alguns rolos de fumo de corda, um armário de madeira envidraçado com doces e balas, prateleiras cheias de latas de conserva com salsichas, palmito, pêssegos, figos, leite condensado e muitos outros produtos. Vendíamos também bebidas: cachaças Cavalinho e Tatuzinho, conhaque Dreher, vinho São Tomé, cervejas Brahma e Antártica, Malzbier, refrigerantes como Guaraná da Brahma e da Antártica, Coca Cola, Pepsi Cola, Crush, Grapete, soda gaseificada para tomar com uísque e outros produtos. E lá estava eu a disposição da freguesia, em uma exposição pública que, aos poucos, fui me acostumando.

De manhã, na frente da venda passavam as mocinhas do Colégio Nações Unidas, do conhecido Professor Carlinhos. Vinham em grupos, alegres, e me transmitiam uma sensação de fé no futuro, de paz, mesmo com sua falação própria da idade. Eu conhecia muitas delas e as cumprimentava. Uma ou outra entrava para comprar chiclete Adams ou Ping Pong, bala, “Drops Dulcora, embalados um a um”, Maria mole, paçoquinha, cigarrinhos de chocolate, suspiros coloridos, pirulito de bananada, chocolate Teta de Nega, pés de moleque da Bela Vista, balas Toffe e muitas outras guloseimas. Ás vezes assistia minha querida amiga Vera Gil, moradora do outro lado da rua, sair apressada para a escola, com seu impecável uniforme do Martim Afonso, muito séria, acenava para sua mãe que estava na janela, e seguia para suas aulas. Aprendi a lidar com muitas pessoas, que prometo contar em outra estória.

Paulo Miorim 21/03/2021

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 21/03/2021
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