A galinha do asfalto


     1. Sou amigo íntimo das aves, sejam elas quais forem. Pro leitor ter uma idéia, sou tão amigo do urubu, temido e refugado, como do pavão, exuberante e vaidoso.
     Gosto até das aves agourentas; mui bem apresentadas por Luís da Câmara Cascudo, no capítulo "Aves e Pássaros de Agouro" do seu interessante livro "Coisas que o povo diz". Lembro que sobre essas aves, tenho uma crônica publicada neste site, que frequento, desde 2006. 
     
2. Ao longo da vida, que já se estende por várias décadas, andei criando muitos bichos de pena, como se diz lá no Nordeste.
     Criei papagaios, periquitos, jandaias, rolinhas, canários da terra e belgas, curiós, graúnas e sabiás; patos, perús, galinhas d'Angola, galos, galinhas caipiras, boas de ovos; e, não estou mentindo, arrisquei criar um ganso, mas não deu certo. 
     
3. O canto de algumas dessas aves sempre me dizia algo. Dou exemplos: ouvia um galo cantar, e logo me lembrava de Simão Pedro negando conhecer o Messias. Ouvia uma coruja cantar na cumeeira de minha casa e, imediatamente, imaginava  que alguém de casa morreria. Ouvia o arrulho rouco de um pombo e me lembrava dos corruptos. E assim levava a vida na agradável companhia dos passarins. Nunca os maltratei. 
     
4. Sendo eu um passarinheiro e ao mesmo tempo devoto de São Francisco de Assis, paguei, por isso, um preço muito alto.
     Fui criticado por amigos chatos que diziam não entender como um fanático devoto do santo protetor dos animais mantinha, em cativeiro, aves indefesas. E eu lhes dava como resposta: tê-las comigo será uma maneira de livrá-las dos caçadores. Uma desculpa a;marela, hoje reconheço.
     
5. Falando sobre o Poverello de Assis e as aves, aproveito para repetir o que disse em outras crônicas, ou seja, que não conheço a cotovia, o pássaro predileto de São Francisco.      Seus biógrafos, como Tomás de Celano, o maior deles, contam que centenas de cotovias, voando em torno da igrejinha da Porciúncula, em Assis, acompanharam, cantando, o último suspiro do Poverello. A cotovia tem cor marrom e um penacho semelhante ao capuz usado pelos franciscanos.
     
6. Falei, escrevi, e a galinha do asfalto?           Noite dessas, a caminho da padaria, ao atravessar a rua, encontrei, assustada, em pleno asfalto, uma galinha d'Angola, um capote como se diz no Ceará. A vontade que tive, no primeiro momento, foi agarrá-la pelas asas e acolhê-la no meu apartamento. Mas quando me aproximava dela, ela fugia e desaparecia por entre os carros, que eram muitos naquele horário.
     
7. Desisti de capturá-la. E pelos seguintes motivos: primeiro porque, morando em apartamento, não tinha um terreiro para oferecer-lhe; segundo porque, naquela perseguição maluca, ela ou eu, ou os dois, seríamos atropelados.
     Ela ainda se defendia com as armas que Deus lhe dera. E eu ? Esmagado pelo peso dos anos, faltava-me força e rapidez pra me desviar do perigo iminente.
     
8. Surpreso, passei, então, a investigá-la.      Queria saber o porquê da presença daquela linda galinha d'Angola no asfalto de uma das ruas mais perigosas do meu bairro, já ás escuras.
     Perguntei aos frequentadores da padaria e ninguem soube dizer. E cá com meus botões: ela estaria perdida; sem saber voltar pro seu terreiro? Estaria precisando de socorro? E continuei a espiá-la, com uma pena dos diabos. 
     
9. Eis que, de repente, vi que a Princesa, dei-lhe esse nome, depois de encher o papo com as migalhas do asfalto, alçara  voo e se acomodara num dos galhos de uma das frondosas amendoeiras que enfeitam a praça Marconi, na Pituba, o bairro onde eu... moro. 
     
10. E imaginei: agora, protegida pela sombra acolhedora da noite, logo a afoita galinha do asfalto estará dormindo. E, quem sabe, sonhando em um dia voltar ao seu poleiro...      Longe, bem longe, dos perigos e burburinhos da cidade grande. 
         
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/03/2021
Reeditado em 03/04/2021
Código do texto: T7195880
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