Meu avô, meu professor.

Dr. Elvézio era um homem forte, engenheiro, professor, matemático. Já nos seus 60 anos, tornou-se meu avô. “Vovô Elvezio”, “vô”, “doutor”. Sempre que vamos visitá-lo, meu pai, que carrega consigo o seu nome, o avisa que estamos indo. “Fernandinha está vindo?”, ele pergunta, todas as vezes. Me emociono, em cada uma delas. “Estou, meu avô! Estou aqui no carro!”, penso entusiasmada. Nesses instantes, por alguns segundos, lembro-me de seus olhos azuis, dos detalhes de seu rosto e do timbre de sua voz. Lembro-me das tantas tardes que passamos juntos, resolvendo problemas de matemática que pareciam os mais importantes do mundo.

Eu era ainda pequena, recém chegada naquela escola tão grande quanto os meus sonhos, quando descobri que não levava jeito para a matemática. A verdade assustara meus pais: eu perdera média e precisaria de aulas particulares! Naquele momento, ocorrera uma das mais bonitas metamorfoses de minha vida: o meu avô transformara-se no mais doce dos professores.

Ele não me negou ajuda e, tímida, levei uma lista com mais de 100 exercícios para resolvermos juntos. A tarde passara depressa e, como num passe mágica, eu aprendera a resolver cada um deles! Dali em diante, tornei-me a (segunda) melhor aluna de matemática da minha turma. Ostentava o posto com muito orgulho afinal, naquela turma estava a campeã brasileira e mineira de matemática (e também minha grande amiga).

Minhas notas subiram enquanto me adaptava ao novo colégio. Convenci a todos: matemática era a minha melhor matéria! Já no fim do ensino fundamental, fui convidada a participar da olimpíada brasileira de matemática, por um dos meus professores. Liguei para o meu avô e rimos, orgulhosos. No dia da prova, fitei as questões ressabiada: não sabia como resolver nenhuma delas! Satisfeita, sorri e devolvi a prova quase em branco. Sabia, no mais fundo de mim, que não era matemática.... mas tirara, sim, a sorte grande: tinha em minha família um verdadeiro professor.

Durante 7 anos, pude aprender com Dr. Elvézio. Sabia, ainda criança, que aqueles finais de semana estariam para sempre guardados em meu coração: sentávamos na mesa de centro, na sala de sua casa e, enquanto ele tomava café, resolvíamos cada um dos exercícios. Ele, paciente, me ensinava cada uma daquelas fórmulas que, de repente, pareciam simples: fomos do sexto ano do fundamental ao terceiro ano no ensino médio e, quando o ENEM chegou, encarei a prova de matemática de peito aberto e coração acelerado: estava preparada! Aquelas 45 questões garantiram minha aprovação na tão sonhada faculdade: somara mais de 900 pontos, vencendo todo o medo e toda a insegurança.

Hoje, já formada, lembro saudosa das listas de exercícios: daria tudo para mais um daqueles sábados, com o meu avô. Ele já não mora na mesma casa e, aos poucos, se despede do professor que tanto me ensinara: a cada semana, sinto que o perco um pouco, no que antes eram apenas detalhes e, agora, são questões importantes de nossas vidas.

Ele já não se lembra que passei no mestrado, que me formei, ou que estamos em meio a uma pandemia. Há algumas noites, ele me ligou, assustado: “por que não me deixam sair de casa, minha neta?”.

Ele não sabe ao certo quando meu namorado irá formar ou o caminho que ele seguirá profissionalmente. Basta que eu chegue em sua casa para que ele me indague “quando seu namorado irá formar?”. Respondo, com cuidado: “em março, meu avô”. Alguns minutos depois, ele me questiona “quando seu namorado irá formar?”. E não importa quantas vezes eu responda, ele me pergunta novamente.

Minha tia, preocupada, o levou ao médico. O diagnóstico já era esperado e aquela tal palavra teima em levar meu avô, aos poucos, roubando-lhe os detalhes dos seus últimos anos de vida. Nossas conversas se tornaram repetitivas mas, de vez em quando, o tenho de volta. Por alguns minutos, ele está ali: o meu professor de matemática!

De repente, ele se recorda que passei no mestrado, que meu namorado irá formar em março e que minha formatura foi online, afinal de contas, estamos em uma pandemia!

Como queria o ter para sempre! Aonde estão os exercícios de matemática? A criança curiosa? O avô tão amigo?

Aproximo-me e escuto-o com todo o meu coração, temendo que, com a mesma rapidez com que ele retornou, ele vá descansar em meio a seus pensamentos.

Hoje, ele me disse que andava esquecido mas que continuava estudando matemática, todos os dias. Quis lhe abraçar: estude matemática, meu avô! Estarei aqui, para lhe relembrar sobre todo o resto. Sabia que responderia quantas vezes fosse necessário: por detrás do rosto já envelhecido, do olhar cansado e dos olhos tão bonitos, morava o meu professor preferido.

Fernanda Marinho Antunes
Enviado por Fernanda Marinho Antunes em 11/01/2021
Código do texto: T7157581
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