Mérito

Para começar a conversa de hoje, vou relembrar uma situação que vivi em 2017. Voltei da minha Colação de Grau, no dia 15 de fevereireiro de 2017. Em casa, devido aos últimos dias bem cheios estava cansada, na manhã seguinte decidi lavar meu cabelo e não fazer “chapinha”. Fiz isso durante muito tempo em minha vida, e essa rotina não me incomodava, porém decidi que não faria mais...

Foram muitas reações e muitas delas de reprovação. Uma delas me deixou irritada e perplexa. -Agora que você se formou, precisa “andar” de forma condizente.Então pelo fato de ter me graduado deveria vestir roupas e ter comportamentos de acordo com minha “nova” situação... me indaguei - qual a situação? Eu continuava a mesma de uma semana atrás.

Levei um tempo para entender. Poucas pessoas conseguem se graduar e por isso eu passei “fazer parte de um grupo privilegiado”. Demorei perceber que aquele “lugar” não é reservado para todos. Me atentei que poucas pessoas chegavam completar a graduação, outras com muita luta sequer conseguiam entrar na Universidade. A primeira conclusão que cheguei, foi que o fato de ter estudado do 5º ano até o 3º do EnsinoMédio em uma escola particular, me proporcionou uma base boa para tentar um vestibular (ainda era assim) 28 anos depois que conclui o Ensino Médio. Trago dessa época algumas amizades.

Sou um elemento fora da curva. Pobre, negra e apesar de não ter herdado mais traços da minha mãe, meu cabelo é crespo, lábios grossos... Porém não percebia que sempre de forma velada me diziam que me cabelo era feio, dentro de casa mesmo. Quando me percebi negra, vi que desde cedo negava minha identidade. Comecei perceber que existia um grupo de pessoas que são na sua maioria empregados domésticos, a maioria “peões de obra”, crianças preteridas nas apresentações escolares, que se alimentavam na “caixa escolar”, com uniforme surrado e que invariavelmente acabavam abandonando a escola. Muitas vezes por necessidade de trabalhar ou por que ao ver seus pais trabalhando e (sobre)vivendo, chegam a conclusão que não vale a pena estudar...

Não citarei estatísticas por que muitos de nós percebe a desigualdade em detalhes que apenas confirmam que as oportunidades não são para todos. Quando bem cedo precisam começar trabalhar para ajudar a família, quando a comida é para enganar a fome. Quando se veste com o que o dinheiro pode comprar. Quando o anúncio de emprego diz ”boa aparência” e a autoestima desde a infância concorda que o emprego não é para você. E você olha o mundo confirmando todas as injustiças que não tem coragem de denunciar...”sempre foi assim”, quem sou eu para mudar? Então leio que morre um jovem negro a cada 23 minutos.

Que chances essas pessoas tem? Falam da música com a letra violenta, mas como falar de flores se o único jardim que conhece é o cemitério? Como falar de esperança se balas perdidas/endereçadas matam crianças? Que futuro tem os que desde cedo olham nos olhos da dureza de viver? Se meninas são entregues na mão do algoz e que com lágrimas aprende que está só. Que assiste a mãe ser surrada por alguém que deveria dividir a criação dos filhos. Então não aprendem a sonhar. Só juram não morrer na escravidão. Conto de fada conhece quem sempre teve chão, pão e aprendeu que tem coração, educação e que a vida nunca disse não. A Justiça já te acusa o crime, essa maldição da cor te acompanha do nascer ao suspirar para morrer. Não importa de que forma, se o amor abençoa, já nasce predestinado a ser amaldiçoado por um monte ”enxofrado” que nesse mundo errado não te dão chance , não! Vai se sujar carregando terra, tendo apenas ela para comer às vezes e depois usar para cobrir quando descansar de vez.

Existe algum mérito em viver assim?