O beijo de Gilberto Freyre

     1. Conheci o mestre Gilberto Freyre (1900-1987) pessoalmente. Estivemos, ele e eu, acompanhados das respetivas mulheres, na casa de uma ilustre e tradicionl família de Salvador que ofereceu ao respeitado sociólogo um jantar rigorosamente baiano.
     
2. Do cardápio, se a memória não me trai, constou estes pratos: moqueca de camarão e de peixe, xinxim de galinha, bobo de camarão, vatapá, caruru, farofa de dendê, abara e acarajé, o bolinho dos deuses. Como sobremesa, quindim e cocada da Bahia.
     
3. Juro, que, num determinado momento, não acreditei que estava jantando com o autor de "Casa Grande e Senzala". Não era fácil encontrar o mestre Gilberto Freyre, um homem do mundo. Pois é, naquela noite, eu me vi, frente a frente, com o solitário de Apipucos. Diria, um momento inesquecível na vida deste cronista menor.
     
4. Em outras crônicas, andei dizendo que o recolhimento covídico me deu a oportunidade de me reencontrar com livros que há muito dormiam em minhas estantes. Livros de escritores por mim escolhidos a dedo. Pois, sempre quis que minhas estantes acolhessem boas obras literárias e não se transformassem num depósito de livros insignificantes.
     
5. Saquei de minha estante nordestina um desses livros e passei a degustá-lo com o apetite de um cão faminto. Me pus a ler "Tempo morto e outros tempos", do mestre pernambucano Gilberto Freyre, adquirido no Natal de 1996, há catorze anos, portanto. Comprara, lera e guardara.  É um diário autobiográfico, de 1915 a 1930, do autor de "Sobrados e Mucambos".
     
6. Muitas coisas interessantes aconteceram na vida de Gilberto Freyre nesse período e ele as conta , nesse livro, com graça e descontração. Não esconde nada; como, por exemplo, narra como atravessou, na sua adolescência, a fase da masturbação, nesse tempo admitida como uma prática nociva à saúde. E como se livrou desse "pecado" levado por um amigo a uma mulher que lhe cobrou "dez mil reis" pela...
     
7. Encantou-me, porém, o que ele contou sobre o beijo que aplicara em Helen, em 1929, quando morava em Nova York. Tinha vinte e nove anos. Alguns trechos, os mais importantes, da sua narrativa, vou transcrever aqui. Uma homenagem à brandura, à delicadeza, à elegância como ele trata o BEIJO.
     
8. Vamos lá. "Beijei Helen na boca. Sugando-lhe a boca como se fosse um supersexo". E prossegue: "Um longo beijo . Mais que um beijo. Foi como se pela boca ela se entregasse toda a mim - sexo e alma. Toda para sempre. Repito que nunca me esqueci desse instante". E continua: "É pena não poder eu reter um instante como esse de uma forma mais carnal que simplesmente abstrata". 
     
9. "E como eu gostaria de guardar certos instantes como se eles tivessem existência própria e fossem como joias que se destacassem do tempo para não serem desgastadas por ele. E persistissem como instantes vivos e não simples e meio mortas sobrevivências na memória  ou na saudade de quem as experimentou".
     
10. Já li muita coisa bonita sobre o beijo em poemas e prosas que encontrei pela minha vida de viciado em leitura. Nunca esqueço, por exemplo, que o nosso Catullo da Paixão Cearense descobriu o "beijo musicalizado"; e, se não estou enganado (me ajudem!) o nosso Carlos Drummond de Andrade criou o "beijo enluarado", em uma de suas crônicas, todas magníficas. Drummond, bom na prosa e no verso!
     
11. Sempre vi o beijo como a mais legítima exaltação do amor. E às vezes da amizade. Um ato sagrado e consagrado. Não se deve, pois, na medida do possível, banalizá-lo, desmoralizá-lo. Para que ele não se iguale ao beijo de Judas: traidor, falso.      Mormente quando o beijo é trocado entre bocas, o chamado beijo "muco-mucoso"; no contato irrefreável de línguas e troca incessante de salivas. Não considero, de todos - perdoem-me! -, o beijo mais gostoso... Mas, longe de mim, condenar quem o adora e pratica.
     
  
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 06/12/2020
Reeditado em 07/12/2020
Código do texto: T7129223
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