Bicho-pau com grilo

O sol derretia-se numa mistura de cinza e vermelho amarelado. Foi assim que ficou guardado o sol daquele dia, até hoje. Em verdade, pode ser que tivesse tudo sido completamente diferente, algo bem mais exuberante e grandioso, ou comum, ou algo nem tanto e nem assim. Na escrita, o real se perde, mas ainda assim compensa, pois a memória, não. Escrever é adiar a morte da memória.

Corríamos desvariados pelas ruas do Rosa dos Ventos, quando ainda nem era pavimentado e toda a sua extensão parecia apenas um grande quintal. Casas mal acabadas espalhavam-se aqui e ali, dando ao bairro aquele aspecto de cidadela no meio do nada, como é mostrado nos filmes de faroeste.

Era o final de uma tarde incomum e produtiva, pois havíamos saído dos limites do Bairro, para explorar o terreno de uma velha construção, também inacabada. Lembro de uma sensação de frieza percorrendo todo o meu corpo: sair do bairro era abusar da liberdade, e isso só aumentava o nosso interesse. Vivíamos aquela fase em que a criatividade desmedida e uma curiosidade sem precedentes ocupam o espaço completo de outras formalidades, do senso e do comum, e não havia mais nada de importante no mundo, além daquela expedição.

Pulamos a cerca e passamos a tarde subindo e descendo de árvores que haviam nascido ali. Comemos folhas de jambo e de seriguela, e quando a sede chegava, um de nós se atrevia a pular novamente para fora do terreno, indo pedir água para todos, na vizinhança. Não lembro agora se foi o Juca ou o Roberto, que havia se distanciado das árvores, sem sabermos por quê, indo mais para dentro dos arbustos. Quando ele voltou, foi com uma caixa de sapato velha, cheia de grilos dentro.

Passamos a tarde colocando os grilos uns contra os outros – aliás, coisa que fazemos até hoje -, nossas mãos amarronzadas por alguma coisa que eles soltavam, talvez para se defenderem. E foi naquela tarde também, que enchemos uma garrafa plástica de bichos-pau, os quais tivemos mais sucesso em conservar, pois os grilos são mais arredios, e fogem na primeira oportunidade.

Deu a hora e corremos para os limites do Rosa novamente. Foi nesse momento que guardei aquele sol que falei no início desse texto. Enquanto corria de pés descalços, as sandálias presas no antebraço, segurando a caixa de grilos (que eu reivindicara) e uma PET com os bichos-pau, eu senti uma coisa que não sei bem até hoje. Sei apenas que foi uma sentimento diferente que me atingiu enquanto corria, uma espécie de estranhamento geral. Balzac lembra que guardamos mesmo os pormenores insignificantes quando algo nos acontece. Eu guardei aquela corrida sob um sol que se punha nem tão diferente dos outros.

Os grilos são mais esquisitos, menos dóceis, foi o que concluí. Depois fiquei sabendo que nesta classe de insetos, apenas os machos gritam. E têm, eles mesmos, os ouvidos nas pernas. Naquela noite, antes de entrar em casa, eu decidi pelos bichos-pau, e me desfazendo do que eu reivindicara, abri a caixa e todos os grilos ganharam o mundo afora. A fuga dos grilos para o indefinido gerou o que chamamos hoje de psicanálise, que se ocupa em desvendar-lhes a trajetória. Eu havia descoberto a psicanálise, tempos depois de sua própria invenção, mas ainda não sabia.

Ezus
Enviado por Ezus em 02/11/2020
Código do texto: T7102077
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.