A piçarreira

Talvez tenha sido um domingo, o dia em que tomei banho na piçarreira pela primeira vez. Eram as férias letivas e, como era de costume, íamos ao interior, passar alguns dias com meus avós. A piçarreira era uma grande cratera, de terra vermelha, resultado da extração de rochas locais. No tempo de chuva, ela se tornava um grande e profundo lago, que ocupava grande parte do nosso dia.

Saltos e rodopios perfuravam o ar, naquelas manhãs que engoliam toda a tarde. E sob um céu límpido e claro, desfrutávamos do trabalho e da espera de toda uma estação, que nos premiava com um lago no meio do nada, por algumas semanas.

Boca de CD era o mais afoito: corria de longe, pisando no chão áspero, e o seu salto alcançava a maior distância que poderíamos imaginar. Todos ficavam impressionados. Mas era uma impressão que também não passava disso: sabíamos que ele era destemido, e era como se fosse normal esperar dele alguma mirabolância. De longe, dava pra ver a Tia Márcia soltando no ar uma risada meio contida e balançando a cabeça de um lado pra o outro, como dissesse “sei não, viu”.

Era um figura, esse Boca. No carnaval, já profunda a noite, juntava-se a outros quatro ou cinco, máscaras de papelão na cabeça, e marchavam pela única estrada que cortava aquele interior perdido, recebendo oferendas as mais improváveis. Minha avó dava alho cru: e todos comiam! Seguiam sem som, sem tarol nem orquestra, e guiados pelo silêncio noturno, desapareciam como duendes em um universo onírico.

Já o Zé tinha uma risada borbulhante: quando ria, soltava muita saliva pelo ar. Era, também, um destemido, e no meio de todos, era o que tinha uma aparência mais grave e muitas vezes o confundíamos com um adulto. Mas não é por isso que também não ria. E quando nadava, parecia um girino no meio daquele lamaçal que era o nosso lago, a piçarreira.

Uma vez, tínhamos ido a praia e o Zé já estava lá. A maré estava rasa naquele horário e as pedras pareciam desfilar, formando uma orla plana de sargaço, musgo e ostras. Enquanto eu apenas me envolvia, distraído pelos meus pés afundando na areia, subitamente o Zé começou a socar as pedras. Todos correram pra perto dele: um polvo, que envolvia a sua mão, chegava aos últimos suspiros. Naquele dia comemos ensopado de polvo ao leite de coco.

Aquelas semanas duravam o ano. Ou os anos, como se pode ver. E não é só por que resistem na memória, os fragmentos, pedregulhos daquelas manhãs e tardes, que estaremos isentos de nos tornarmos uma piçarreira com o tempo. Talvez que os momentos sombrios, quando a noite é maior que o dia, sejam apenas o inverno nos enchendo, e logo estaremos mergulhando outra vez, o Boca, o Zé, alguém. Ou talvez não.

Ezus
Enviado por Ezus em 28/10/2020
Código do texto: T7098269
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.