O eterno retorno e Kafka
Naquele tempo, eu andava com uns cabelos meio crescidos, com uns óculos de aros finos, estilo Ray Ban, numa bicicleta prateada. Passava de lado a lado na Avenida Principal, fazendo umas curvas bruscas no meio do asfalto recém-colocado. Ainda havia mão dupla naquele trecho, que na verdade era o principal da cidade, pois era o centro; mas isso não gerava problema, pois também havia poucos carros - quase todo mundo andava a pé ou de bike.
Frequentemente, lá pelas seis da noite, podia-se ver um vulto rápido zarpando pela lateral do muro da Companhia de Águas e Esgotos, que ficava ali pertinho mesmo do centro. Na maioria das vezes era eu, furtivo em desviar de pedras e buracos, com movimentos calculadamente intuídos pela prática: enquanto pedalava e pensava no meu destino, era como se já o estivesse vendo à minha frente: a Praça Central e um corredor que dava para o Sebo.
O Sebo era, quase sempre, o meu destino. E, em verdade, acredito que ainda não saí dele. Ali nos encontrávamos, sempre, sempre, depois do expediente (cada um tinha o seu), eu e mais uns três ou quatro. Quando eu chegava, muitas vezes, a radiola já estava a mil, tocando Chico, Caetano, Gil, ou uma coletânea de Zé Kéti e Monsueto, da série História da Música Popular Brasileira - Grandes Compositores. E em um determinado momento, eu sabia que colocaríamos pra rolar Rio by Night, do Nei Lisboa: esta era a canção-hino do Sebo. E isso só poderia acontecer quando todos estivéssemos transbordantes e espirituosos (uma terminologia careta para bêbados), que era quando frequentemente todos estavam falando muito alto e surgiam frases assim:
“LITERATURA É TUDO!”
“KAFKA NÃO DEIXA SAÍDAS!”
“BORGES É A LITERTURA!”
E aquilo tudo parecia uma verdade aceita e subentendida, mas ainda não completamente elucidada – talvez nenhuma verdade o seja, mas não estou aqui como um agente literário do Nietzsche ou coisa que o valha.
(Do Franz, talvez...)
O fato é que, frequentemente, quando me lembro daquela época, passa-me pela cabeça aquela sentença sobre o Kafka. Eu não entendia muito bem o que queria dizer com “saída”. Saída de onde? De que? Me perguntava. O tempo é substância para a literatura. Hoje, me pergunto: por que, nesses anos todos, sempre retorno à Kafka?