A VOZ

A VOZ

A casa era tomada pelo cheiro daquela fragrância. O aroma das flores plantadas no jardim convidava o beija-flor para vir visitar e delas sugar o néctar para sua energia. As abelhas extraíam seu pólen, para que fosse proliferado em outro jardim.

Seu Antônio gostava daquela vida, tinha hora para acordar, sempre dizia que galo só canta depois dele estar de pé. Sentava na varanda para ver a beleza do dia florindo em seu jardim, ali fica por trinta minutos tomando bando de sol. Aposentado, levava uma rotina de quem vive só, não gostava de ficar na cama, sempre repetindo quem dorme muito perde o melhor da vida.

Antes de qualquer tarefa, tomava uma ducha de água fria, cantarolando alguma música do repertório de Roberto Carlos. Ele não negava a ninguém o homem romântico e apaixonado, tendo se casado uma única vez, afirmava que a falecida era sua alma gêmea.

De repente tudo muda na vida de seu Antônio, capaz de tirá-lo da rotina a ponto de entrar num estado de neurose.

Telefonou para sua única filha afirmando que tinha alguém, em algum lugar da casa ou na porta da rua, o interrogando.

– E o que diz a voz, papai?

– Quem é você? Qual o seu nome?

– E você tem respondido o quê?

– Pergunto: quem quer saber?

Seu Antônio continuou, dando mais detalhes:

– Às vezes, a voz vem lá de fora, para ser mais preciso da casa do vizinho. Saio à porta, olhando de um lado para o outro a rua, não vejo a presença de uma viva alma. Então fecho a porta e é como se a voz estivesse dentro de casa, ou não. Corro para a janela e abro o suficiente para observar a presença de alguém.

Passados dias sem ter flagrado o autor daquela voz, Seu Antônio resolveu montar guarda na esperança de saber de onde vinha a voz. Logo cedo, quando o sol ainda começava a despontar, arrumou os apetrechos para vigilância: uma cadeira, um guarda-sol, uma botija de água, algumas frutas e vários petiscos para passar o dia.

Tão logo a primeira luz do dia surgiu, já se encontrava sentado embaixo da árvore enfrente a sua casa. Começou a ouvir barulhos nas casas vizinhas, som de liquidificador, que por certo era fazendo vitamina; da outra exalava um cheiro de café fresquinho.

O primeiro a passar foi seu Raimundo, que mora na terceira casa depois da dele, seguindo à direita, passou tão depressa que nem notou a presença de seu Antônio, nunca foi mesmo um homem dado a boa conversa. Ao contrário da filha, Tereza, menina graciosa de sorriso bonito, vai de um canto ao outro da boca, ou melhor, dizendo, que boca! Lábios carnudos, de longe, já podia perceber aquela boca pintada com batom vermelho cintilante chamando atenção.

D. Joana, vizinha de frente à casa dele, grita com João para não se atrasar, essa semana já recebeu duas reclamações do colégio, e quer saber o que o menino anda fazendo no percurso até chegar para primeira aula. “Ainda vou lhe segui, só pra ver que caminho você anda tomando.”

A bexiga do seu Antônio começou a dar sinal de que precisa ser esvaziada, mas ele parecia não dar muita importância. Hoje tinha que saber de quem era aquela voz que não parava de fazer pergunta. Para si mesmo dizia: “Mijo na calça, mas daqui não saio”.

Levantou a cabeça para olhar entre as folhas da árvore, à procura de um filhote de passarinho que piava e pulava de galho em galho. Durante este tempo em que acompanhava o passarinho, se esqueceu da tal voz que lhe interrogava.

Olhou no relógio que marcava 13h. Sentou na cadeira e notou a calça molhada por conta da bexiga cheia. Sentindo-se incomodado com o cheiro da urina, levantou-se e se dirigiu para dentro da casa, a fim de troçar a calça e a cueca. Desconfiado que fosse acontecer naquele momento, a tal voz, fez tudo o mais depressa possível para voltar a sua guarita de observação. Renovou a água, uma mais geladinha por conta do dia quente; deu até um tempo para saber as notícias do dia, ligando a TV.

O programa chama sua atenção, naquele momento o entrevistado é um psiquiatra falando das várias alucinações fruto da imaginação, criada na mente para compensar alguma perda, ou solidão vivida por alguém.

Seu Antônio se lembrou então da falecida esposa que sempre lhe perguntava: “Quem é você?’’, para que dissesse seu nome nos momentos de perda da memória.

Castro Rosas

Castro Rosas
Enviado por Castro Rosas em 14/10/2020
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