UM GOLPE DE SORTE

Apesar da dificuldade inicial das vendas do primeiro CD - só tinham mil, mas não havia nenhum esquema comercial de vendas, nem havia dentre os Camelos quem tivesse tempo de cuidar da comercialização - após dois anos as músicas novas se acumulavam ejá era tempo de tratar do segundo.

Com a experiência do primeiro já se tinha conseguido um orçamento mais reduzido e quem sabe agora, após o grupo já estar mais conhecido, fosse mais fácil conseguir patrocínio.

Conversamos sobre isto naquela reunião noturna do Clube do Camelo, na sede campestre. Havia alguns convidados naquele dia e o Gervásio tocava uma música instrumental no seu violão de sete cordas quando soou seu celular. Era a primeira dama, como ele chamava, convocando-o para ir buscá-la em algum lugar. O doutor Gerva retirou-se de pronto e ficamos novamente imersos em música. O Eduardo estava mostrando uma letra nova em que eu tentava colocar melodia sobre acordes de sol maior. O início saiu legal, mas quando estávamos no segundo verso, novamente toca um celular. Dessa feita o meu:

- Tive um acidente com o carro...

- Onde foi?. Como aconteceu?. Tem alguém ferido?

- Foi no cruzamento da Conselheiro com a Três de Maio...

Ele atravessou a preferencial e me pegou em cheio.

- Mas estão todos bem?

- Tá. Ele se feriu na cabeça, mas parece que está bem.

Não fazia mais de cinco minutos que o doutor Gervásio saíra - ele é Ph.D. em eletrônica - e de fato o local do acidente ficava a umas quatro quadras da sede campestre.

Paramos tudo e fomos imediatamente dar socorro ao Camelo pós-graduado.

Lá chegando os dois carros estavam imprensados no muro sobre a calçada sem condições de seguir adiante. O causador do acidente com um lenço, tentando estacar o sangue do ferimento e dizendo que não havia problema, que o seguro pagaria todo o prejuízo. Alguém olhando o branco no meio do sangue na cabeça disse:

-Olha acho que está aparecendo o osso!

O advogado do trombador também já estava no local e sugeriu que em vez de chamar a perícia do DETRAN, todos fossem à delegacia onde ele assinaria uma confissão de culpa. Isto resolveria o caso do seguro e seria mais rápido e econômico.

Estando presente o nosso consultor jurídico o Dantas e concordando com o procedimento lá se foi toda a comitiva: o Gervásio, o Dantas, o Firmino, o Eduardo, o motorista imprudente, seu advogado e eu, para a delegacia, não sem antes, por insistência do Firmino, passar pela Clínica dos Acidentados do Dr. Maradei, para verificar os danos no Sr. José. Este era o nome do acidentado causador do acidente.

O Firmino fez questão de levar o seu José e mais alguns enquanto os outros iam em mais duas viaturas.

No Maradei enquanto os médicos avaliavam os danos na cabeça do Sr. José, os outros esperavam fazendo mil prognósticos e imaginando inúmeros desfechos para a história. Como a clínica era particular, o paciente não tinha plano de saúde e ninguém viera prevenido na questão de dinheiro, alguém, acho que o Firmino, já adivinhando a conclusão do episódio, se prontificou a pagar a despesa do hospital com seu cartão de crédito.

Após as radiografias e os pontos na cabeça verificou-se que nada de mais sério havia acontecido, ficando apenas o paciente em observação.

Fomos afinal todos para a delegacia.

Lá chegando, para cumprir as formalidades legais havia apenas um escrivão e um policial. Era mais Camelo e envolvidos do que funcionários. O escrivão foi logo preencher o boletim de ocorrência para poder voltar ao seu cochilo da madrugada. Apesar da segunda metade dos anos noventa, o equipamento existente ainda era a velha máquina de escrever. Computador, nem se falava.

O escrivão parecia muito familiarizado com o equipamento tanto que era tatarátatá, tatarátatá e vuruummm. Demorava mais porque, a cada vuruummm da mudança de linha, o zeloso funcionário tirava do bolso uma escovinha chata de plástico e passava nos cabelos ralos. Parece que o zelo era maior com a cabeleira do que com a ocorrência. Era tatarátatá, tatarátatá, vuruummm e sshhhii; tatarátatá, tatarátatá vuruummm e sshhhii, sshhhii...

Terminou a novela quando o sol já vinha raiando. Mas antes de irmos pra casa o Firmino, que havia servido de motorista para o Sr. José contou que durante o percurso tinha conseguido que ele financiasse nosso CD. E a fundo perdido. Isso mesmo. O Sr. José não só consertou o carro do Gerva, como mandou fazer dois mil CDs do Clube do Camelo.

Quando todos souberam disseram:

- Por que o seu sete (como às vezes chamavam o Gervásio por tocar violão de sete cordas) não assumiu a culpa.

- Era só dizer que vinha na contra-mão.

- Podiam arranjar uma testemunha e dizer que o poste da esquina desabou e ninguém teve culpa.

Alguém disse que o acidente foi causado por uma loura misteriosa que apareceu de repente e distraiu o trombador. Como, quando chegamos, a loura não estava mais no local do acidente e como a esquina fatídica não fica longe do cemitério, chegou-se até a pensar em assombração.

Depois do acontecido, porém, todos foram pra casa cansados, mas satisfeitos...

A música?.

Sim, a música foi esta, com melodia minha e letra do Eduardo:

CAMELÔ

(Almir Morisson e Eduardo Queiroz)

Tem osso exposto mas Ph.D. tá legal

O trombador é bom moço

Leva ele pro hospital, tem osso exposto...

No Maradei manda engessar cidadão

Quando for pagar a conta pode por no meu cartão

Botem panos quentes para evitar confusão

Acho que a culpa é do Gerva que vinha na contramão

Refrão

Ao seu delega direi que o sinal apagou

Que o breque falhou, que o carro enguiçou

E que o poste da esquina de maduro despencou

Além do mais a vida me fez camelô

Mete o Sete na cadeia, mas compre o meu disco doutor

Eu sou Camelo, mas já virei camelô

Mete o Sete na cadeia, mas compre o meu disco doutor

19 / 04 / 97