de quando eu era gente

“Nunca mais. Nunca mais recitarei Fernando Pessoa no pé do ouvido de seu ninguém.”

E é assim que começo mais uma mentira. Sim, mentira. Quando a sociabilidade for permitida novamente, podem me procurar pendurada em um pescoço na praça da prefeitura.

Só aconteceu uma vez, mas basta uma vez. Coisas do interior.

Se querem saber o que recitei, eu digo. Queria descobrir o que viria depois daquilo, o que viria se eu me permitisse, se eu me entregasse mais que completamente. A paixão deixa a gente meio tolo, meio besta. E eu que já sou por natureza, faço a festa.

“Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme, o sofrimento, a excitação”. Falei olhando nos olhos, isso é raro. Eu tenho vergonha de olhar diretamente. Falei, mas ele já sabia. Ele sabia ler olhos. Recitamos juntos. Ele deu ênfase na excitação, como se fosse a única coisa dita por mim. Acho que ele só prestava atenção nas minhas últimas palavras.

Parece até que eu saio por aí declamando poemas, recitando versos. Não saio, não sei fazer. Eu, na verdade, preciso de muita paciência da outra parte para que eu passe da fase tímida. Às vezes nem saio.

Isso já rendeu muitas risadas de um certo alguém. Será que era da minha cara que ele estava rindo? Que falta de consideração! Eu subi a serra, praticamente, pra ver a criatura.

Lá vai outra mentira: nunca, nunca mais subirei a serra por seu ninguém.

Ele riu da minha criancice óbvia. Mas uma parte de mim não era e nem é criança. Não sei. Eu achava, na época, que citar Bauman ou Foucault me tirava automaticamente do rótulo da idade. Tinha acabado de fazer 15, dá pra entender a emoção. Mas nesse dia não conversamos sobre nada disso. Eu me senti como se estivesse em um rito de passagem. Por que adolescente fica impressionado com as coisas? Que raiva que eu tenho. Mas amo ver como as ideias mudam. Nunca, nunca mais vou me aventurar no sol rachando dizendo que ia comprar açaí. Nem de açaí eu gosto.

Foi a maior aventura que tive. Não foi nada. Eu sou quieta demais para a imaginação que possuo. Acho engraçado que tenho uma parte que pesa e pondera, já a outra delira. Não é criação minha, Ferreira Gullar quem disse. E disse bem pra mim.