as duas partes de mim deliram

“Tem coisa que só sai da gente por escrito”. Eu queria dizer que li isso enquanto andava na rua e me deparei com um muro cinza qualquer. Mas não. Eu nunca li nada em muro algum e também não saio de casa por motivos óbvios. E eu tenho uma redação sobre muros. Sim, sobre muros. Tipo o de Berlim.

A frase mais verdadeira que eu vi nas últimas semanas foi essa. Realmente existem coisas que só saem da gente quando são escritas. E no meu caso as coisas só saem de mim desse jeito. É triste. Poético, que seja. Mas intrinsecamente triste.

Eu gostaria de ver uma sacola dançando no vento e dizer que

isso é lindo. Mas eu não posso sair pra ver isso. Me olhei fixamente no espelho e não me reconheci, é muito estranho se encarar por vários minutos, sem piscar. Eu vi minha imagem se desintegrar com o esfumaçado que foi se formando. Quando pisquei, nada estava embaçado. Tudo voltou a ser nítido. E eu me olhei como se nunca tivesse me enxergado. Como as pessoas me veem? Toda vez que eu olho diretamente pra alguém, eu vejo o mesmo enevoado. Mentira, toda vez não. Só quando estou amando a pessoa naquele minuto. Fixo nos olhos e o restante do rosto se desmancha. Daí eu beijo. E depois? Bem, e depois eu não sei. Minha memória apaga o fato, ela guarda a essência. E a essência é como se fosse um sonho, uma coisa distante, incerta, inebriante, linda. Será como lembram de mim? Certamente não é assim. E talvez de jeito nenhum.

Eu percebo o mundo de um jeito que combina cor, cheiro e som. Posso entrar em um lugar e criar uma cena inteira na minha cabeça. Uma cena que eu penso existir num filme, mas não existe. Uma cena que penso já ter vivido, mas nunca vivi. Eu tenho tanta imaginação reprimida. Pela sociedade? Pela família? Não, pior. Por mim mesma. Eu cansei de pensar só pra mim, de todos os dias criar diálogos, cenas, momentos. Tudo isso em microssegundos. Seria bom ter com quem dividir as visões de mundo. Eu sempre faço isso em ocasiões erradas, como em uma vez que interrompi um beijo pra contar uma história. A cara dele era um misto de surpresa e indignação. Merecia uma pintura, mas não sei pintar. E eu sinceramente queria terminar a história. E terminei.

Outra vez foi um trecho de um poema, uma música, uma piada, uma paixão minha, um filme, uma sombra que eu vi e enxerguei algo interessante. Eu não sei não demonstrar o que me vem instantaneamente. Isso gera delírio e dor. É bom de escrever, de ler, de cantar e ouvir, mas terrível de se viver. É quase uma questão de vida ou morte: será arte?