Sangue canino no asfalto

     1. Hoje, dei uma saidinha, abandonando, por alguma horas, a reclusão covídica. Fui cortar o cabelo. Já me sufocava a longa cabeleira que me emprestava a cara de Moisés, o homem das Tábuas da Lei. Saí a pé. Desisti, na garagem, do carro, temendo confundir a embreagem com o freio, tanto tempo faz que eu não dirijo.
     2. Cruzei ruas e avenidas, até chegar na barbearia do meu amigo Wando, que apara minha juba há mais de dez anos. Aprimora meu visual como ninguém. No percurso, teve momentos que me senti em outra cidade; foram muitos os meses que não voltava a um caminho que conhecia como a palma de minha mão. 
     3. Cruzava a principal avenida, de tráfego intenso e perigoso, quando vi um vira-lata ser atropelado. O mais revoltante: o cãozinho foi atropelado atravessando a avenida na faixa para pedestre, naquele instante liberada. 
     Um motorista apressado desrespeitara o sinal vermelho, visível e de luz impecável, feito exatamente para avenidas movimentadas. Doeu-me ver o atropelamento. Era a primeira vez que assistia tamanha tragédia.
     4. Gosto muito dos cachorros vira-latas. Minha amizade com eles vem de longe. Neste meu site, repousa uma crônica sobre um deles, o cachorro Cacau.
     Todas as noites, ele me esperava na porta de minha república, idos de 1960, não se importando com meus horários de chegada sempre invadindo as madrugadas.
     Nesse tempo, eu era copidesque de um importante jornal de Salvador, cuja primeira página fechava  após a meia-noite, o que é normal nos matutinos.
     5. Sem condições de dar socorro imediato ao caõzinho agonizante, cuidei de protegê-lo para que acabasse de morrer em paz. 
     Ao meu lado, um cidadão usou seu celular para chamar o Orgão da Prefeitura encarregado de fazer, digamos, o levantamento cadavérico e a remoção dos animais que, por isso ou aquilo, morrem na via pública. 
     6. Os prepostos da Prefeitura não demoraram, coisa difícil de acontecer.      Chegaram e, habilidosos, levaram o vira-lata, sem dono, para onde, não soube. Digo sem dono porque ninguém chegou para reivindicar a posse do cãozinho morto em circunstância tão desastrosa. Os que passavam, olhavam... olhavam e seguiam em frente. 
     7. Na aflição, lembrei-me dos versos do belo jornalista, poeta, cronista, novelista maranhense Odylo Costa, filho (1914-1979) intitulado "São Roque e os cachorros", incluído entre seus poemas sobre "Os bichos no Céu".  Passo a transcrevê-lo:
               São Roque e os cachorros 
     Caminhou São Roque/ a pé, pelos morros/ e várzeas da Terra,/ juntando os cachorros/ já velhos ou doentes,/ sem osso e sem lar,/ para oferecer-lhes/ um grande jantar./ São Pedro zangou-se:/ - "Isso não se faz!/ Jantar de cachorro/ No Céu? É demais!"/ Jesus disse: - Roque/ É quem tem razão."/ Pedro riu-se , e logo/deu-lhes vinho e pão.
     8. Restou-me, olhando para o asfalto ensanguentado, rogar a São Roque (1295-1327), padroeiro dos cachorros, que receba o cãozinho, que acabara de  morrer atropelado, com um jantar com pão e vinho, mesmo que  São Pedro não goste. 
     É uma maneira de acolher, com justo carinho, um vira-lata sem nome, sem dono e sem sorte que teve morte trágica em plena cidade grande, a capital baiana...      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/09/2020
Reeditado em 10/09/2020
Código do texto: T7059086
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