Ablutomania

     1. Olha, preprei-me com bastante antecedência para, desrespeitando o enclausuramento que o virus chinês me impôs, dar uma voltinha na orla, assim que amanhecesse. O mar fica a dois passos do meu prédio.
     Queria aproveitar o solaço que vem desmoralizando o inverno baiano, sempre muito molhado.
     2. Comuniquei à minha família a minha decisão de fazer uma caminhada à beira-mar, logo que acordasse. Houve quem aplaudisse.      
     Mas também quem recebesse minha decisão com desconfiança. E com razão: é sobejamente sabido que fazer cooper não é o meu fraco. Sou um cidadão de andadas domésticas; dentro de minha casa. 
     3. Recluso há mais de seis meses - que martírio! Não sei mais nem onde ficam os Shoppings -, recluso há mais de seis meses, redigo, só saí do meu apartamento três ou quatro vezes, para cumprir inadiáveis compromissos.
     Quero dizer com isso que esse tal de Covid-19 pode, de repente, me agarrar numa dessas esquinas da vida, mas não lhe falicitarei o acesso. 
     4. Macaco velho, tenho seguido, sem hesitações, as instruções ditadas pelos médicos, esforçados profissionais no combate ao Covid-19 que, apesar desse esforço, continua levando milhares de brasileiros aos hospitais, às UTIs e às covas rasas dos cemitérios. 
     5. Macaco velho, repito, mantenho sobre minha mesa e na cabeceira da minha cama frasquinhos de alcool gel. Recorro sempre a esses frasquinhos; antes de dormir e ao acordar. Não darei vez ao azar.  Isso sem falar nas vezes que lavo minhas mãos com perfumados sabonetes líquidos escolhidos por Ivone, neste assunto, de um indiscutível bom gosto.
     6. Por falar em lavar as mãos, conheci uma senhora, já no ocaso de sua vida, porém, lépida e loquaz, que adorava lavar as mãos. Tinha mania. Não podia ver uma pia; uma torneira aberta.      Achava estranho esse seu costume.      Vivia a purificar suas mãos como se elas representassem na permanente ameaça à sua saúde.
     7. Comecei a indagar por que aquela senhora vivia a lavar suas octogenárias mãos, dando a entender que queria vê-las sempre e sempre desinfetadas. 
     Conversando com um psicólogo de minha amizade, perguntei-lhe o que havia com dona Fulana que não parava de lavar as mãos; a ser escrava dos lavatórios. Ele sorriu e disse que tinha várias clientes "sofrendo do mesmo mal". 
     8. Ao ouvi-lo dizer "do mesmo mal", tomei-me de um piedoso arrependimento.
     Não devia ter criticado tantas vezes aquela doente senhora. Mas, como disse, não aguentava vê-la lavando as mãos por isso ou por aquilo ou sem isso nem aquilo. Lavava simplesmente.
     Como bom psicólogo, ele leu no meu semblante o meu constrangimento. Com duas palavras, tranquilizou-me. 
     9. E entrou nas explicações, até me dizer que dona Fulana sofria de "ablutomania". E foi rápido em me esclarecer que "ablutomania" não era outra coisa senão a mania de lavar as mãos. Detalhou, inclusive, a origem latina da palavra. Achei tudo muito interessante.
     10. Noite dessas, ao ser criticado por parentes porque estava lavando minhas mãos repetidas vezes, disse-lhes, com o fito de deixá-los tontos: olha, não me critiquem. Eu sou um ablutômano! 
     Alguns cuidaram de se despedir, sem conseguirem disfarçar o medo com esta história de ablutômano; se mandaram, certos de que o parente adquirira um perigoso virus.
     11. Sim, e a andada à beira-mar? Ia esquecendo. Afinal, em que dera? Não dera em nada. Amanhecera chuvendo muito e a chuva engolira a orla e ainda me mandou este recado: "Fique em casa".
     Uma boa desculpa, achei, para, mais uma vez, adiar o que o meu médico, não o geriatra, mas o cardiologista, chama de "andadinha". E completa: "Nem que seja vinte minutos, duas vezes por semana".  
     Mas ele sabe que terei sempre uma desculpa para fugir da andadinha. Qui mau exemplo!   
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 25/08/2020
Reeditado em 09/10/2020
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