DAQUELES INVERNOS !

O vento rasgava o manto da noite numa canção medonha. Pendurada do lado de fora da parede, sacudia-se uma bacia de alumínio provocando um tamborilar que chegava a ser irritante.
Contorciam-se as pereiras de galhos despidos e a noite era um gêlo.
Julho de tempos idos numa casa recheada de afetos sacudida por uma ventania cortante, parente proxima do minuano dos pampas.
As estrelas - que pareciam aproximar-se da terra - faiscavam num céu muito claro.
De quando em quando a suindara cruzava o quintal em seu guinchado agourento parecendo o ruído de uma tesoura.
Os olhares se cruzavam e falavam por si das crendices de então.
[ É a coruja suindara rasgando mortalha noite a dentro. Vai morrer alguém pelas cercanias – profetizavam as velhinhas de minha meninês ]
Ao redor do fogão a lenha, a família reunida e quem mais fosse se achegando
Nhá Chiquinha, afilhada de vó Maria, no auge de seus 78 anos, era presença constante.
[ Vinha pedir a benção à madrinha ]
Alguns tijolos sobrepostos ao assoalho de madeira eram base a uma bacia repleta de brasas, aquecendo os pés daquela gente friorenta.
Lobisomens, mulas sem cabeça, o “bradadô” e outras amenidades do gênero desatavam-se naquelas falas mansas, quase guturais, que representavam cada personagem.
A cozinha incensava-se ao café recém coado e os pinhões estalavam na chapa quente.
No canto da mesa, vó Maria empunhava seu martelo e nos servia com “bilés”,que eram uma massa de pinhões assados ou cozidos resultantes da sutileza das marteladas.
-Esse martelo pertenceu ao meu avô, dizia a velhinha.Tomara não o joguem fora quando eu morrer.

[ Sacumé, né ! Quando a gente morre, se livram dos apetrechos que guardamos ao longo da vida ]
Um pesado suspiro...Um silêncio...Entrecortado uma vez mais pelas marteladas sobre os frutos adorados das araucárias.
Agora posso dizer:
Isso não ocorreu, dona Maria. O martelo e mais alguns de seus "apetrechos" ,


estão comigo ainda hoje e espero que permaneçam sob o cuidado de novas gerações.O valor é tão somente sentimental e revendo a foto neste instante, relembro aquelas noitadas de frio intenso , rebatido pelo aconchego daquela cozinha que bem mais que o calor do braseiro fazia transparecer um intenso calor humano.
Este martelo me traz à lembrança a doçura cabocla que me adulava a alma naquela casa singela, em noites de estrelas faiscantes e vento varrendo arbustos despidos no quintal.
Nhá Chiquinha tomando o rumo de sua casinhola, os braços franzinos cruzados sobre o peito, devidamente abençoada.
A madrinha à porta recomendando-lhe:

- “Que Deus te guie minha fia, porque o dia é dos vivo e a noite é dos invisiverrrs”.

Nhá Chica saía batendo chinelo pelo carreadorzinho e eu, me borrando de medo dos “invisiverrrs”, enfiava-me sob a pesada coberta de penas , até que o sono chegasse.