TUDO É UMA QUESTÃO DE REGÊNCIA
 
     Hoje eu quero reunir os meus pedaços. Há partes de mim por muitas partes desse mundo. Eu penso na Londres da era vitoriana. Será que lá eu encontraria Darwin para conversarmos sobre a evolução das espécies? Para falar com ele sobre minhas aulas de biologia em um dos cantinhos de Minas de Gerais? Eu me encontraria com Marx para falarmos de luta de classes no Brasil? Comentar com ele de como isso ficou evidente com os CPFs necessitando de distanciamento social enquanto os CNPJs fazem lobby para que as fábricas voltem a se exalar através de suas chaminés e o comércio escancare seus produtos para uma gente com menos dinheiro. Essa pandemia sufoca nossos planos mais que a revolução industrial. Não sei se há pedaços de mim em Manchester ou em Liverpool.
         Talvez em Liverpool que acabou de ser campeão e eu vibrei apesar da minha eterna simpatia pelo Newcastle. O que me levou a Londres foi entender com Shelley, a Mary, conseguiu reunir pedaços de gentes diversas. No meu caso, reunirei meus pedaços, mas acho que mesmo sendo pedaços do Cláudio, são de gente diferente. Minha mão direita não se parece com a mão esquerda, não combina nada com nenhum dos pés. Com o fígado nem se fala.
         Viver em uma Londres conservadora nos costumes e liberal na economia foi bem mais romântico que em um Brasil sob os mesmos ideais. Dirá alguns que lá não havia pandemia. Lá não havia isso ou aquilo. E nem dá para dize que é Ou isso ou aquilo.
         Ou Londres vitoriana ou Vitória londrina. Sim, há pedaços de mim em Vitória, capital do Espírito Santo. Não é a de Santo Antão e nem a da Conquista. É vitória e só. Mas Vitória é agridoce, vai ficando melhor quando a gente vai margeando o litoral para o norte até chegar à foz do Rio Doce, onde há onda da boa, e a gente então tem a Regência esplêndida, singela como a Rainha.
         Eu gostaria de ter ouvido Lulu Santos, que foi para a Califórnia viver a vida sobre as ondas. Mas de verdade, vivemos a vida sob as ondas. Nesse mundo que aflorou lá em Londres cria-se ondas que vêm com tsunami sobre nós. Assim como uma onda de Regência ou Povoação.
         Não dá para ser artista de cinema. Não dá para ter o vento beijando os cabelos e nem as ondas lambendo as pernas. O que pode fazer isso é algum cachorrinho, desses “mexelentos”, tentando agradar o dono em recompensa pela pousada e pela boia. Ser mexelento não é o mesmo que ser xexelento, que fique claro.
         Não quero ser mexelento e nem xexelento. Quero apenas reunir meus pedaços em uma pandemia que dilacera os planos. Talvez 2021 seja o ano que não haverá verão. Não por causa do frio e chuva intensa. Mas por causa da grana. Ainda assim eu não teria como escrever um Prometeu moderno ou um Caboclo Bernardo ultraliberal. 
         O que eu preciso é me salvar como alguém que estava no Cruzador Imperial Marinheiro e um Caboclo Bernardo ultraliberal não teria nada a ver com isso. São vários náufragos que são apenas CPFs assim como eu.
         A era vitoriana é uma onda que permanece fertilizando a cultura e a economia. As ondas da Califórnia são coisas hollywoodianas que passam pelas nossas vidas. Tudo é uma questão de regência.
         Ah, para reunir pedaços, quando se está em isolamento social, para voltarmos a ser o Frankenstein que fomos antes, é preciso dela. Da regência, mais que da vitória.


DA SÉRIE: CRÔNICAS ANACRÔNICAS
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 28/06/2020
Código do texto: T6990768
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.