A SOLIDÃO DA DOR

"O pior da dor é a solidão

da dor".Leonardo Boff.

Dizer sobre a dor é tocar o invisível, e fazer o intangível ser visto não é tarefa fácil. Entretanto, a pergunta que não cala: Por que a alegria, o prazer e outros sentimentos que são, portanto, igualmente intangíveis, são compartilhados e não são contestados? Enquanto que a dor se torna invisível para quem não a sente?

Quem escreve busca dar luz aos diversos tipos de sentimentos, sensações. Os Mestres da escrita conseguem transformar ou transmutar sentimentos dos mais diversos em arte. Seja na Poesia, seja na prosa, roteiristas são gênios nessa arte.

A vida cotidiana, por motivos ocultos a nossa vontade, não pode, pelo menos nesse período-tempo, ser vivida só de alegrias; felicidade é um sonho longínquo se for mensurada de forma global. Embora sonhar felicidade para alguns, possa ser questão de números, preciso acreditar que para a maioria seja a questão do todo e não individual.

Recentemente fomos pegos, em meio à pandemia que já é um exercício coletivo de dor, por dois episódios terríveis: a morte por sufocamento de um homem negro e desarmado, nos EUA e no Brasil, um menino morre enquanto a mãe garantia a proteção do animal de estimação da patroa que deveria estar tomando conta do seu filho por alguns minutos.

Durante a escravidão, era comum que escravas, amas de leite, deixassem seus filhos em segundo plano para amamentar os filhos das mulheres brancas.

Em 2020, 132 anos após a abolição da escravatura a vida de um filho de uma mulher negra “abolida” é sacrificada em troca do bem estar de um animal de estimação.

Então, é preciso mais para provar a existência da dor?

É preciso mais para que o intangível seja tocado, visto e comprovado? Se essa mesma mulher negra fosse pivô de uma notícia que envolvesse uma fortuna, ela de pronto receberia seguidores, admiradores e gente “solidária”, entretanto, sou capaz de apostar que esse trágico fato em menos de um ano será esquecido por todos nós. E quem será capaz de mensurar a dor dessa mulher? Quem estará disposto (a) a estar ao seu lado e dividir essa dor?

Não bastaria apenas uma fala: “não consigo respirar”, se a dor fosse audível para que o policial branco parasse de sufocar o homem negro? Não seria o correto que o governo agisse de imediato quando, da ciência de que o vírus poderia matar ao menos uma pessoa ? Um ser humano?

Mais de 37 mil mortes não são capazes de tornar a dor audível e visível?

E alguns dizem: sair às ruas é suicídio... Reivindicar é comunismo e ato violento contra a democracia. Não! Não! Reivindicar é ato de dignidade, um pouco da que ainda resta a um povo que só sabe o que é luta, só sabe o que é a solidão da dor (dor da fome, das injustiças, dor do descaso, dor da ausência dê).

Reivindicar é buscar manter ainda alguma dignidade e também a prova do quanto nosso povo brasileiro é pacífico e tem honra. Um povo que têm sua força ancorada apenas na ESPERANÇA de que um dia possa respirar, pois a cada segundo de nossas vidas nos tiram o ar.

Tristemente só percebe isso quem de fato sofre, pois os alienados, mesmo tendo um pé depositado em sua jugular, já se adaptaram ao ar rarefeito, a uma vida limitada de liberdade e de sonhos. Uma vida que se compraz com pão e circo e é permeada pelo espetáculo daquela sociedade que Guy Debord abordou em “A Sociedade do Espetáculo” em 1967.

Quando nos deixamos dominar pelo “espetáculo” somos autores do caos e não percebemos a ausência do que nos é mais caro e que faz a existência valer a pena, a dignidade humana. Perdemos a dignidade quando não temos mais a idoneidade de ver e sentir a dor quando ela não está doendo em nós.

*** Quando escrevi, contávamos 37 mil mortes...Hoje, 21-09-2020, já são mais de 135mil.