A Simão

A poucos minutos passara uma carroça por mim. Estava com dois rapazes magros, sem camisas e sem calçados, cujas faces acredito já ter visto em algum momento. Levavam consigo sacos de entulhos e deviam estar fazendo isso para ganhar um trocado qualquer: talvez seja essa a maneira que se sustentam e sobrevivem.

O cavalo, marrom, levava aqueles dois homens, o carregamento, além do peso da existência. Seus olhos eram profundos como o mais agudo oceano, e seus cascos emitiam no som do atrito com o asfalto a marcha lúgubre de seu próprio sepultamento, o qual se repete todos os dias desde sua escravização: lembrei-me de seu Simão.

Ele, um senhor que chegara na vizinhança de minha infância mais sua família quando eu nem havia nascido, e que a família até hoje lá vive. Era um homem crescido no campo, na lida da terra e no trato com os animais. Era rústico nos atos, na expressões e nas relações com os outros: inclusive comigo. Eu o entendia bem, os animais que possuía - cavalos- também.

Sua pele, curtida pelo sol, possuia rugas rochosas que sitiavam as marcas das gerações de gente que, como ele, nascera sob a exigência de ser forte. Não pisava com a planta dos pés inteira no solo, contorcia-se com o lado externo deles e assim caminhava, pisava. Nunca lhe perguntei o motivo daquele andar, mas ouvi dizer que foram espinhos que de tão profundas feridas que fizeram, as sequelas que permaneceram foram essas, e talvez alguns ainda estivessem encravados em sua pele.

Falava muito sobre cavalos e as expressões que no dia a dia utilizava também se correlacionavam com eles, como uma muito utilizada- "lavou a égua" - que era usada quando queria dizer que a pessoa se deu bem; ou então quando queria falar da pele e a chamava de couro e do pé que chamava de casco. Ele era mais um como Fabiano de Vidas Secas, que se sentia também bicho.

Nos dias que lá regressava, à noite, ia à frente de sua casa e ficava até tarde da noite ouvindo suas histórias e piadas que contava e ria. Eu não as entendia perfeitamente, mas gostava de ouvi-las. Cuidava bem dos cavalos, mesmo como o pouco recurso que tinha, e se alegrava da vida que levava ali naquela primeira casa daquela rua. Seu Simão falecera há mais de dez anos em um último dia do ano, foi-se embora e, quando por lá passo, em minha memória vem claramente a imagem dele sentado embaixo de uma árvore - ficus - que foi cortada, e o som de sua rouca gargalhada.

John Canere
Enviado por John Canere em 06/05/2020
Reeditado em 07/05/2020
Código do texto: T6939093
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