PASSUNGUETE !

Pensem numa criança raquítica, feia e esgualepada !
[ Esse cara era eu ]
Não que agora seja eu lá grande coisa, mas confesso:
Já fui bem mais feio.
Por conta de meu raquitismo fui entupido de Emulsão de Scoth, Biotônico, Específicos do Dr.Humprheis (alguém se lembra?) além das “indecentes” gemadas.
Era um tal de gemada com leite e canela, gemada com vinho, gemada com “cacau em pó” – naquele tempo nem sei se existiam os achocolatados, enfim...
Depois de um certo tempo, dada a pouca credibilidade com os ovos de galinha, as gemadas , por determinação De dona Maria - minha avó paterna – que sonhava em algo decente na estampa do neto, passaram a ser feitas com ovos de pata.
Por Deus ! Não gosto de lembrar daquela fase.
Como fui sempre birrento, certo dia decidi que não mais iria ingerir aquelas nefastas gemadas.Nem preciso adiantar de que o método “vai goela abaixo,infeliz!” foi posto em prática,porém,com pouco êxito.
Como o processo de “coradura”, segundo os da casa, não ocorria de jeito nenhum , vó Maria optou por uma moderníssima iguaria de sua culinária de bugre;
-Vou fazer este piá de bosta engolir um “passunguete”,na marra.
Confesso que mesmo fazendo cara de paisagem, fiquei curioso pelo que me estava sendo preparado.
Numa panela de ferro,alguns pedaços de carne bovina temperados à alho foram fritados em gordura.Acrescentara-se a isso, caldo de feijão, um pouco de arroz e couve refogada.
Assim que levantou-se fervura, algumas colheres de farinha de milho foram espalhadas sobre aquela mistureba e, bem mexida com colher de pau, resultou no dito”Passunguete” que me foi oferecido com o propósito de fazer-me crescer, ficar bonito e forte.
Nem um dos tres itens do tal propósito surtiu efeito,mas o rango foi devorado com entusiasmo por aquele que ,até então, era movido a gemadas.
Assim, a palavra “passunguete” foi introduzida no vocabulário lá de casa e eram muitas as variantes em cada nova combinação “passungueteada”.
O tempo correu, eu consegui uma ligeira melhorada na estampa, mas continuei despertando a atenção de meus familiares que não estavam ainda totalmente satisfeitos com a evolução da figura ainda um tanto esgualepada do guri.
Meu pai, chegado a alguns exageros,era quem primeiro despertava em nossa casa.
Tal qual o poema de Raimundo Correira, era ele “A primeira pomba despertada,ainda que estivesse apenas,raiando sanguínea e fresca a madrugada”.
Isso ocorria lá pelas cinco da manhã e o seu primeiro gesto era girar o botão do velho rádio à bateria,sintonizado eternamente na Rádio Farroupilha de Porto Alegre ,recebendo para nossos aposentos o casal, Teixeirinha e Mery Terezinha esgoelando-se em suas peculiares gaúchiçes.
Na sequencia o fogo, o café coado, o chimarrão...
Na cama eu ficava à espera da conhecida frase:
- Thute ! Tá pronto o teu passunguete.
A esta altura do campeonato os passunguetes eram bem mais eleborados, tinham uma certa finésse.
Descia do armário o pacote de biscoitos Lucinda e um bom punhado era quebrado em pedacinhos numa caneca de ágata.
Café e leite as encobriam e depois de um certo tempo estava no ponto a iguaria.
Sentado à beira do fogão eu me deliciava comendo aquilo com colher.
Meu pai falava de seus planos, tecia algumas recomendações para o meu dia e tomava o rumo de seu trabalho.
Satisfeito , eu retornava para a cama.
Hoje, no meu lanche da tarde, observando a rua encolhida na ausencia de gente e ouvindo ABBA na rádio que sintonizava,confesso sem o menor pudor, ter sentido uma falta enorme daqueles chamegos que beiravam fogões, daquela gente simples e tão preocupada comigo, daquelas priscas eras guardadas nas gavetas do tempo.
Aí,comecei a revisar meus arquivos fotográficos e me reencontrei numa foto ao lado de Eugenia minha prima querida.

O ano é 1956.Eu no auge de meus “florescentes” quatro anos.
Pensei comigo: Com essa cara de ET, Eugenia deve ter sido muito corajosa em apresentar-me ao público.
Perdão prima ! Eu mudei um pouquinho.Apesar do carão
de bodega, estou ligeiramente apresentável agora.
Minha gratidão pelo seu afeto.Que Deus lhe ilumine nesses campos do infinito em que voce hoje mora.