O LAR DE MENINAS

Quando estava como estudante de teologia no SALT-IAE-AN, hoje Unasp-Engenheiro Coelho, fui trabalhar de motorista para o lar de meninas “Ellen White”, mantido pelo Igase, Instituto Geral de Assistência Social Evangélica, da Golden Cross. Gerenciado por meu saudoso amigo, Pastor Sesóstris César Sousa [1915-2013]. Hoje, vinte e dois anos depois, não existe mais, foi desativado, Ali viviam crianças e adolescentes que eram enviadas para tutela pelos juízes, por problemas familiares e outras para futura adoção e ainda outras que não tinham mesmo para onde ir. Teve muitas histórias, mas essas duas, depois, me chamaram muito a atenção. Eram cerca de trinta e cinco meninas. Um lar só de meninas.

Cleomária foi uma delas. Moreninha, usava óculos com muitos graus. Com seus onze ou doze anos de idade. Era uma menina bem pobre, não sei de onde veio, ela estava perdendo a audição. Fomos levar Cleomária ao médico para exames laboratoriais e descobriu-se que os pais haviam deixado estourar um dos ouvidos que inflamou e depois ficou saindo pus. É que a garota abandonada, um dia, dormindo, pousou uma mosca varejeira e depositou seus ovos dentro do ouvido dela que depois se transformaram em larvas e começaram a devorar tudo por dentro. Foi preciso uma cirurgia de alto risco para limpar completamente todo o aparelho auditivo e fortes medicamentos continuados por um longo período para livrá-la daquela surdez certa, entre outras consequências, com possibilidade até de morte.

Tatiana era do Rio de Janeiro e estava lá com outra irmã, Marcela. Apareceu um pequeno orifício no pescoço e por ali estava saindo um líquido com um mau cheiro horrível. Possivelmente fosse pus. Fomos levá-la ao médico e ele propôs que a levássemos ao instituto Boldrini em Campinas. Com isso ele indicou a suspeita de que fosse um câncer, pois esse instituto é especializado em vários tipos de câncer infantil. Levamos, portanto a Tatiana lá e foram feitos os exames. Constatou-se então que era um câncer. Mas que tipo, como seria o tratamento, qual o procedimento? O Instituto resolveu que enviaria uma conta prova da biopsia para a Alemanha e assim fez. Quando já ia iniciar o tratamento de quimioterapia houve uma reviravolta no caso. Veio o resultado da Alemanha e constatou-se que não era câncer, era apenas um pelo de um gato que ela havia sido aspirado por ela e estava numa formação cavernosa na garganta. Foi feito então uma cirurgia para retirada do pelo do gato e ela ficou curada.

Dona Ester era a chefe do lar. Era só ela e uma filha, Maristela e moravam dentro do lar de meninas. Já era avó. Tinha pouco tempo nessa função. Eu dirigia uma perua Kombi e levava todas as meninas, a todos os lugares que precisavam, buscava laranja, o leite, levava-as a escola, ao médico, ao dentista, fazia as compras e tantas outras coisas.

Dona Ester, era a protetora e cuidadora do lar das meninas. Fazia isso como se cuidasse das próprias filhas, com muito amor e dedicação no seu coração. Via todos os detalhes e estava pronta a toda hora para um atendimento qualquer que fosse. Dedicava-se às meninas e da melhor forma à gestão do Lar das Meninas!

Estas duas histórias me chamaram a atenção na sua essência. A primeira, pela questão do abandono e o que ele pode representar na vida, a pobre menina a padecer pelo desamor dos pais, mas, teve um final feliz. A segunda história, pela surpresa do efeito de um pelo de gato ao ser aspirado e os estragos que pode causar, mas, no caso da Tatiana, teve um final feliz. Finalmente a terceira, a dedicação de dona Ester a tantas crianças e adolescentes que nunca havia visto na vida e que de repente foram colocadas sob sua guarda e ela, agora, ter que tratar como suas filhas! É um exemplo de abnegação, carinho e respeito pelo ser humano. Claro, nem tudo é um mar de rosas, houve muita luta e dificuldade e infelizmente, finalmente o Lar de Meninas fechou. Como dizia o Pr. Sesóstris César: “É um antigo provérbio popular, mas a verdade ‘inda perdura’: Em todo cálice de felicidade, no fundo, inexorável, inexplicável, jaz latente, uma gota de amargura.”