A via de mão dupla do cuidado

Por vezes, as distâncias nos aproximam. O covid-19 obrigou milhões de pessoas a se distanciarem, mas também as deu a oportunidade que estarem mais próximas de si mesmas e dos que com ela compartilham o mesmo teto. Talvez alguns estejam vivendo tempos difíceis por nunca terem tido tempo para estar consigo mesmo.

Passando pela rua deserta, vi duas vizinhas conversando e uma dizia à outra: “nossa, quanto tempo que não te via, menina, gostei de seu novo visual”. A outra agradeceu e começaram a conversar sobre suas vidas. Vi também um pai testemunhando que ganhou um ovo de páscoa que sua filha pequena lhe fez de presente e que jamais poderia receber esse mimo em sua hora de trabalho, ele estava trabalhando em casa.

A quarentena deixará suas marcas, tanto na economia, com tantas pessoas sendo demitidas, mas principalmente nas crianças. Quando eu era criança gostava quando chovia, pois era um raro momento que a família toda estava dentro de casa. Meu pai fazia questão que todos lá estivesse, que ninguém estivesse na rua. E hoje quando chove, sinto cheiro de aconchego familiar. Talvez as crianças pequenas não entendam o que estamos passando e só quando adultas terão consciência, mas certamente isso ficará marcado na vida delas, família reunida. Não sairemos desse tempo difícil mais fracos e sim mais fortes. Mais fortes pois sairemos unidos e, unidos mais fortes seremos. Só agora e nesse tempo é que faz sentido dizer um paradoxo: separados estamos unidos.

Todo ser humano é um estranho ímpar, li isso em algum lugar, e me fez pensar que além de ímpar, somos ilhas dentro de um arquipélago, gotas dentro de um imenso mar. Mas uma gota poluída, pode contaminar outras gotas. O mar é constituído muitas gotas e depende da pureza de todas para ser um mar puro. Ou seja, somos uma parte de um todo que precisa se cuidar para que o todo seja cuidado. Expressamos nosso amor quando cuidamos de nós mesmos, pois ao cuidarmos de nós mesmos cuidaremos também de quem amamos. Assim como os que amamos, se tiverem bem, também estarei bem. Nunca o cuidado consigo mesmo foi tão importante para o cuidado do outro sem precisar ser um ato de egoísmo.

Não sei se foi obra do destino, até porque nem todo o mundo é cristão. Mas o período de reclusão trazido pela quarentena veio justamente no período de quaresma que é um tempo de penitência, uma preparação para a festa da ressurreição de Jesus Cristo. Talvez, a quarentena obrigou a humanidade a se recolher para depois poder ressurgir. Ressurgir com novos valores, a olhar o outro como um rosto, as pessoas não como simples números, mas como um mundo que precisa ser cuidado e que é frágil. E principalmente, a estar mais presente junto ao nosso Eu, a olhar com calma nossos familiares.