O Fiapo

Estação Paraíso, Metrô. Lá eu a vi pela primeira vez, feia e tímida. Pessoas comuns costumam sempre possuir algo incomum e, muitas vezes, por menor que seja essa particularidade, esse fiapo perdido e camuflado no meio da vasta teia de defeitos e virtudes, é justamente ele, o fiapo, que melhor define essências. Comparo esse fiapo a essas miraculosas células tronco, tão comentadas hoje em dia. São capazes de potencializar órgãos falidos, reverter quadros patológicos e, pasmem, formar de novo todo um indivíduo. São, sem dúvida, fiapos consistentes.

Pois bem, ela exalava uma mistura de tristeza e tédio. Parecia estar cansada com a rotina, amuada com uma eventual falta de perspectiva ou triste, apenas triste, mas com motivos. Não aparentava ser esse tipo de mulher que finge tristeza e desamparo em troca de alguma atenção masculina. Autopiedade? Também não era o caso. Mas não me perguntem por que. Até esse momento eu era apenas intuição. A lógica viria com o tempo.

Tenho mania de rotular. Porém, não o faço por mal, faço por bem. O perdão sempre precede os meus "rótulos". Caso algo ridículo, medíocre ou inapropriado em alguém chame minha atenção, passo à segunda fase, a dos motivos. Sugestões sobre o motivo daquela pessoa ser o que ela esta sendo naquele exato momento em que a observo. Todos sabem que motivos não só explicam, mas também justificam e atos justificados estão a meio passo do perdão. Meus rótulos não são preconceituosos. Também não os faço para afastar de mim tudo o que é diferente. Muito pelo contrário. Durante toda minha vida busquei motivos para tudo e para todos. Esse hábito, de tão forte, extrapolando o laboratório onde trabalho e as aulas que dou, se estendeu pelo restante do meu dia a dia. Andar de carro seria horrível ao exercício dessa prática. Quanto ao Metrô, posso lhes relatar uma imensa quantidade de rótulos já feitos, mas isso coisificaria as inúmeras almas que, de passagem, tive o prazer de rotular.

Ela usa brincos discretos, quase imperceptíveis. Mãos pequenas e limpas, sem anéis. Unhas bem feitas, cobertas com esmalte rosa claro. Os cabelos, curtos e escuros, emolduram um rosto, como já disse, feio. Essa feiura, no entanto, não a desabona como um todo. Ela tem seus encantos e eu, por enquanto, apenas intuo sobre eles. Algo me diz que ela os tem. Não são de percepção fácil. Precisam ser depurados, admirados um a um e com vagar. Devem exigir observações continuadas, incomuns nos dias de hoje, mas não a mim.

Nunca a encarei. Sempre fiz uso da minha visão periférica, muito boa, aliás. Detestava ser encarado e, portanto, seria incapaz de fazer o mesmo com quem quer que fosse.

Obtive muitas informações no primeiro mês: as vitrines que gostava de ver na volta para casa, com quem costumava puxar uma conversa no antepenúltimo quarteirão, o doce comprado na moça do tabuleiro, o passo mais rápido no último quarteirão e, enfim, sua casa. Ainda nesse primeiro mês, percebi algumas variações mais óbvias: seus sapatos, por exemplo, gostava de mudá-los. Modelos sempre simples e baratos. Se assemelham a sapatilhas de balé e sempre com cores suaves: branco, creme, tabaco e um, meu preferido, amarelo quase mostarda. Esse último, quando usado, vem sempre acompanhado de uma saia amarronzada curta, mas não muito.

Fazendo uma breve pausa em meu relatório, gostaria de alertá-los para um detalhe muito sutil. Tanto essa saia, como as sapatilhas, eram as suas opções das sextas-feiras sim. Digo sextas-sim, pois inúmeras sextas-não existiram, já que em várias eu com ela não pude estar. Suponho que se vestisse desse modo também nas sextas-não. Quase tenho certeza disso, pois é metódica na sua grande simplicidade. Cuidava muito bem do pouco que tinha. Limpava o banco com a mão, antes de sentar. Procurava se afastar, discretamente para não ofender, de pessoas com aparência não muito asseada. Protegia o colo com um pano, sempre que comia algo. Agora, quanto a ter pouco, isso também ficou óbvio no primeiro mês de observação. Quero dizer que num curto espaço de tempo eu já havia memorizado todo o seu guarda-roupa. E atraído que sou por motivos, creio que ela se sentisse significativamente mais interessante com a saia e sapatilhas das sextas-sim. Sextas-feiras introduzem fins de semanas e fins de semanas trazem novas esperanças. Quebrar o tédio, a rotina e a melancolia é sempre bom, mesmo que fique apenas nos planos. A humanidade tem esse dom, o de se refazer sempre que possa. Quanto a se sentir mais bonita com a indumentária das sextas-sim e realmente ficar, confesso que..... bem, digamos que ela ficasse menos feia. Sim, menos feia seria o meu veredicto. Talvez vocês tivessem outro, pois tais valores são muito relativos, mas esse é o meu. Lembro-me que, numa dessas sextas-sim, ela resolveu introduzir uma novidade: um lenço sobre o cabelo. Quase a perdi na multidão em função da mudança. Um lenço delicado e de muito bom gosto. Listas amarelo-escuras com fundo gelo. Casavam perfeitamente com a saia e sapatilhas. Por que ela inventou o lenço? Fiquei muito curioso com a mudança, nunca fazia nada que não tivesse algum significado especial. Conclui que ela, sem dúvida, conseguiu ficar bem menos feia.

Carregava ares taciturnos nas segundas e terças-sim. Ficava visivelmente deprimida e isso, quase sempre, ocorria nos inícios de semana. Sua introspecção a levava muitas vezes a caminhar olhando para baixo. Não costumava agir assim todos os dias. Porém, nos inícios de semana, ela parecia remoer magoas antigas, talvez pressionada por mágoas novas. Algo como uma frustração recente, como um gatilho, ressuscitando outras tantas que já julgasse esquecidas. Pois, se é seu costume andar olhando os próprios pés, nesses dias parecia olhar para algum lugar bem mais distante e profundo que o de costume. Sua alma, eu creio, procurava focar o subsolo da sua existência. Ela saía de si, emergindo sempre pálida e com os olhos mareados. Quase sempre era assim, nas segundas ou terças-sim.

Vejam vocês que houve uma vez na qual, não resistindo a alguma dor lembrada, ela desmaiou ainda dentro do vagão. Quase traí minha presença ajudando-a, mas a senhora sentada ao lado evitou que seu corpo inerte fosse ao chão. Segurou-a e logo vieram outros para acudir. Calcinha verde-suave. Na ânsia de arrumá-la novamente no assento, levantaram sua saia que a expôs. Fiquei constrangido com a cena. Cheguei a levantar e ir ao seu encontro, mas um senhor próximo, muito respeitosamente, devolveu-lhe a dignidade. Com um carinho de pai, corrigiu suas roupas, postura, etc. Ofereceu ajuda à senhora que a segurava e ficou por perto. Prosseguiu depois com a sua vida, descendo na estação seguinte. Enquanto isso, já no banco paralelo ao seu e o da senhora que a amparava, foquei atento seu rosto. Fui voraz na absorção de todos os detalhes que só a visão frontal poderia me trazer. Nariz, boca, bochechas, olhos, tamanho, proporção, cor, etc. Anotei tudo que pude, porém, talvez por ter sido científico demais, não fiquei satisfeito. Até hoje me arrependo de não tê-la apenas contemplado, absorvendo somente aquilo que à minha alma conviesse. Teria sido muito melhor. Eu perceberia bem antes a bondade intrínseca daquele rosto, nariz, boca, lábios e olhos, que mesmo fechados, esbanjavam significado. Eu teria, enfim, identificado por completo o seu fiapo, sua célula tronco.

A senhora que a segurava precisava descer e me pediu para continuar fazendo o mesmo. Garantiu que chamaria alguém do próprio Metrô para ajudar. Disse-lhe que também eu iria descer logo, mas a seguraria durante algumas estações.

Estendi meu braço esquerdo sobre seus ombros e, com a mão direita, ajeitei sua cabeça no meu peito, pois insistia em pendular ao sabor do movimento do trem. Rezei para que ela não acordasse enquanto eu ali estivesse. Precisava passá-la para alguém. Seu perfume era suave e muito agradável, diferente daqueles baratos com odor semelhante ao de lustra móveis. Era algo natural, como se ela tivesse esfregado pétalas de alguma flor no corpo. Foi essa a sensação que tive: ela, após o banho, esfregando pétalas no corpo. O perfume, as roupas,a calcinha certamente sabia como se tornar menos feia.

Assim que o trem parou, entraram alguns homens e, com cuidado, a levaram ainda desacordada. Aquela senhora deve ter mesmo pedido ajuda. Fiquei um pouco preocupado, mas cedendo à lógica, lembrei-me que ao confortá-la, seu pulso e respiração pareciam normais. Ela ficaria bem, torci.

Alguns pares de dias-sim se passaram e eu não a vi mais. Nada na quinta-sim daquela semana, nem na terça e sexta-sim da seguinte. Foi aí que, contrariando minhas próprias regras, tentei encontrá-la em todos os dias, seguidamente, sem intervalos. Nada, ela havia sumido. Procurei motivos e lancei hipóteses. O desmaio talvez traduzisse algum problema de saúde mais sério. Talvez tenha tirado licença em função disso. Será que apenas mudou de horário no trabalho?

Minha esperança em revê-la levou-me a perseguir essa possibilidade por todos os dias das duas semanas seguintes. Foram quatorze dias-sim ininterruptos, nos quais minha assiduidade foi impecável. Respeitei com esmero todos seus antigos horários de retorno ao Metrô no final do dia. Procurei variá-los um pouco para o caso dela estar tendo uma nova rotina. Mas tudo isso não deu em nada e, não a vendo mais, comecei a carregar um desânimo crescente, frustração e, enfim, um vazio inesperado, difícil mesmo de lidar. Tirei sua ficha de meus arquivos. O que os olhos não veem, o coração não sente, pensei. Meus olhos não a viam faz tempo, mesmo assim meu coração batia forte, pedindo atitudes. Fui à cata de outras coisas, para diminuir o vácuo deixado pela última, mas ela passou a ser uma lembrança constante, a qual eu tinha que enfrentar, resolver ou, ainda em tempo, não permitir que essa maldita sensação acabasse por me deprimir de fato. Tinha que fazer algo e que fosse algo objetivo, esclarecedor. Resolvi ir até sua casa no dia seguinte, mais ou menos no mesmo horário daquele dia em que a segui até lá no início das minhas observações. Precisava apenas de uma boa desculpa. Algo insuspeito, que me desse a chance de levantar, à vontade, todas informações possíveis: sua nova rotina, estado de saúde, perspectivas de vida, etc.

Uma senhora idosa e mal-humorada atendeu a campainha. Era uma pensão. De fora não parecia, pois embora no centro velho da cidade e com seus cerca de cinqüenta anos ou mais, a casa era bem cuidada e me fez notar detalhes femininos de bom gosto. Jardineiras com flores no peitoril das janelas, um jardim frontal pequeno, mas bem cuidado, com palmeiras em leque estrategicamente arranjadas em bonitos vasos de cerâmica, calçada bem varrida com uma bonita lixeira branca de metal que, com o apoio chumbado no cimento, se elevava como uma taça, livrando seu conteúdo dos vira-latas comuns no bairro. Fiquei pasmo por não ter notado tais detalhes na primeira vez que a segui até ali, mas tudo se explicaria em breve.

- Pois não?-disse a senhora. Não apoie na lixeira, por favor, acabou de ser colocada, completou com arrogância.

- Bonita sua casa, minha senhora, exclamei com humildade.

- Isso é coisa da Carolina: ficar jogando dinheiro fora com essas bobagens. Ela que não venha me pedir desconto no ....., mas o que é que estou dizendo. O senhor não tem nada a ver com isso. Se estiver vendendo alguma coisa, não quero nada, obrigada.

- Não, minha senhora, não se trata de venda. Sou do IBGE e estamos fazendo um estudo sobre a rotina do bairro. Horário de trabalho, número de moradores, poder aquisitivo, disse-lhe, me adiantando para mostrar minha "identificação" feita com muito esmero lá em casa, na noite anterior.

-. Visa melhoras no transporte urbano, conclui.

- Está bem, tenho alguns minutos. Pode entrar.

Havia um bonito jogo de sofá no hall de entrada com uma vistosa samambaia entre eles. Uma mesa de centro retangular, com um vaso de flores do campo, emprestava um gostoso aroma à sala.

- A senhora trata mesmo muito bem desse lugar. Parabéns! - disse-lhe.

- Coisas da Carolina, uma inquilina minha. Mas o que o senhor deseja saber, afinal? – perguntou impaciente.

- Quantas pessoas a senhora abriga aqui? – disse, iniciando o questionário.

- Cinco: três homens e duas mulheres.

- Qual a idade aproximada deles e os horários de saída e chegada, por favor?

A velha senhora desfiou com riqueza de detalhes todos os dados dos ocupantes da casa e, por volta da sexta pergunta, parecia se sentir bem mais à vontade na minha presença. Na oitava questão me ofereceu café e na décima bolachas, biscoitos e coisas assim.

- O senhor é muito magro, precisa comer mais. –disse ela com ar maternal.

Minha criatividade estava se esgotando. Já não sabia mais o que perguntar. Mas me bateu uma vontade muito grande de não sair dali e, me aproveitando da simpatia agora explicita daquela mulher, algo novo sempre me surgia.

Deixei-lhe claro ser aquela minha última visita. Isso a fez se demorar mais nas respostas, entremeando comentários a respeito da personalidade e do caráter de cada um de seus moradores. Esclareceu que, sempre que podia, os aconselhava, pois sendo bem mais vivida, era uma espécie de mãe postiça: podiam contar com ela.

Disse, num momento de maior intimidade, que Carolina, uma inquilina sua há mais de seis anos, a vinha preocupando muito. Definiu-a como aquele tipo de mulher que facilmente se deixa levar. Uma dessas românticas incuráveis. Ela teria sofrido um desmaio no Metrô há cerca de uns vinte dias e que, quando a trouxeram para casa, demorou mais uns dois para ficar boa novamente. Havia posto na cabeça que um homem muito interessante costumava, muito discretamente, observá-la e que, era só questão de tempo, se aproximaria para confessar seu interesse por ela. Alimentou fortes esperanças de que isso viria a acontecer numa sexta-feira e idealizava o belo fim de semana que passaria em sua companhia. Mas com as sextas vindo e a suposta aproximação do homem nunca chegando, ela foi se deprimindo e sempre começava a semana seguinte carregada de tristeza. Estava certa que, para sua felicidade, seria capaz de fazer aquele senhor feliz e foi veemente com a velha senhora nessa certeza. Teria repetido a ela inúmeras vezes o comentário.

- Sei que o senhor não tem nada a ver com isso, mas como ela pode ter certeza de que um homem que ela nunca viu antes seria o certo? – perguntou a senhora.

- Ela deve ser muito intuitiva. – respondi.

- Não senhor, nada disso. Isso não é intuição, é desespero, carência. Dessas que não larga, enquanto a gente não toma tento e se resigna que a vida é isso aí que passa na rua e não na TV. – disse categórica. Mas eu gosto dessa menina - continuou - e estou muito preocupada. Acredite o senhor que........

Ela me contou com detalhes que Carolina, assim que saiu do desmaio, esteve com o dito senhor ao seu lado, no mesmo banco do Metrô que, segurando-lhe o ombro e a cabeça, reconfortou-a, não permitindo que caísse. Assim que sentiu seu corpo amparando-a, ficou petrificada de encanto e prazer e prosseguiu fingindo a inconsciência. Absorveu o que pode daquele instante, carregando-o consigo de modo ferrenho, determinado. Queria provar a todos que estava certa: foi feita para aquele homem, tinha certeza disso.

- Ela resolveu mudar tudo aqui. – disse a mulher. O sofá que estamos sentados, essas plantas que o senhor está vendo, a mesa de centro, tudo para receber esse tal homem. Isso sem contar o pintor e o jardineiro, que ela contratou por dez dias, para tornar minha casa mais acolhedora a esse visitante imaginário. Tentei impedi-la no começo, meio e fim, mas ela insistiu. Chegou quase a implorar que deixasse fazer tudo o que tinha na cabeça e não pediria nada, absolutamente nada, em troca. Eu não queria me sentir culpada. Se a impedisse, ela teria um troço. Ficaria de cama novamente. O senhor parece ser uma pessoa esclarecida. Não gostaria de conversar com ela? Eu sozinha não estou dando conta. Mais meia-hora ela chega. Foi num shopping aqui perto comprar uma saia nova, pois, veja o senhor que loucura, ela acha que o homem virá entre hoje e amanhã. O senhor me ajuda? Aproveita e janta com a gente. Que tal?

Aceitei o convite ao mesmo tempo em que disfarçava o suor farto que me brotava. Assim que a velha senhora ia descrevendo as dores e sonhos de Carolina, senti um buraco negro, um imã, sugando aos poucos toda minha gravidade com uma força sutil, porém crescente. Um tipo de força que parecia recusar o bom senso. Era suave, mas firme. Não agia de forma radical, como se me arrebatasse por completo e de uma só vez. Ela tomava com delicadeza e envolvência cada pedaço do meu ser e os melhorava com meticuloso vagar para que eu não perdesse cada detalhe. Quando chegou e me viu, muito emocionada, Carolina largou as compras para me abraçar. Depois que me beijou, aninhei com a mão sua cabeça em meus ombros, tal qual havia feito no trem, durante seu desmaio. Nunca imaginei repetir esse movimento tantas vezes em minha vida.

- Meu Deus! – disse a velha senhora que nos observava. - Meu Deus! – ela repetiu.

GripenNG
Enviado por GripenNG em 26/02/2020
Reeditado em 12/01/2023
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