Reflexões Natalinas

“É Natal. A mesa posta. Conversas expostas ao tempo. Muita troca de presente. A gente sente vontade de pular de alegria. Dá um beijo na tia. Espera o pai. Sai e entra. Doido pra dar meia-noite e ouvir o discurso do avô que está tecendo sílabas de emoção”. Eu escrevi isso em 1988, quando eu tinha 14 anos. Foi um pedido da minha professora de redação ao fim de um dia de aula. Escrevi a crônica e só no fim encontrei o começo dela, que é exatamente este texto. O meu olhar de criança sobre o Natal.

Mas, de cara, eu digo que, talvez, este não seja um texto simples de FELIZ NATAL. No entanto, é uma reflexão minha sobre tanta coisa, sobre meus natais, sobre este Natal específico. Ou seja, já quero alertar que aqui também você pode não encontrar coisas bonitinhas sobre esta data tão especial. Ok? Então, se você aceitar o desafio, siga lendo e me acompanhe nessas reflexões.

Como eu disse, o texto inicial desta crônica foi escrito quando eu tinha 14 anos. E haveria apenas mais um Natal com minha mãe casada com meu pai. Eles se separaram em maio de 1990. Estou falando isso e vocês vão entender o porquê. Até porque Natal é um misto gigantesco de muitas emoções. Tem gente que fica muito emocional. Gente que chora por qualquer coisa. Gente que lembra de quem partiu. Gente que se reconcilia com alguém. E, sempre, temos este contato com a família. Se, por algum motivo, ficamos ausentes em grande parte do ano, focamos no Natal para dar este instante para a família. Veja bem, eu disse instante. Porque é um instante que pode durar 1, 2, 3 horas. Porque algumas pessoas, já com as novas famílias, muitas vezes tem que fazer um certo tour na noite de Natal.

Eu que já tenho 45 natais na costa, muitas vezes chego a me perguntar o que realmente vem a ser o ESPÍRITO DE NATAL? Minha namorada, sempre questionadora, chegou comigo e disse: “O que realmente a gente comemora no dia de Natal?” E acho esta pergunta genuína. Porque Natal pode ter virado muita coisa: excesso de comida, presentes, Papai Noel, etc. Tanto que vi algo agora e achei interessante. Era uma lista sobre o que fazer no Natal. O primeiro item era “DAR PRESENTE”. Aí o verbo DAR estava riscado e substituído por ESTAR presente. O que é bem especial. Afinal, uma das coisas mais importantes que você pode dar para alguém é o seu tempo. Então, estar presente é dar esse tempo para compartilhar com alguém algo bonito, fraterno.

Agora a gente tem sempre essa mania - que é algo muito humano -: A gente se banha do espírito Natalino apenas uma vez ao ano e em poucos instantes que se dissolverão em breve. Então, passamos a dizer: “Seja doce ao menos no Natal”, “Ah, me poupe, pelo menos no Natal”, “Não acredito que você vai fazer essa grosseria em pleno Natal”... E por aí vai. É como um cara que é bem escroto no ano todo, mas chega no Natal, ele quer ser um cordeirinho que distribui muito amor (risos). Isso é uma hipocrisia aceita socialmente. E digo isso com muito humor, porque se olharmos bem, é muito engraçado. No fundo, adoramos varrer a sujeira pra baixo do tapete. Ignorar algumas coisas para ser feliz nem que seja em um dia. Então, temos aquela família que não se tolera e chega no Natal ela quer cear junta. Algumas famílias conseguem disfarçar um pouco até engolir o peru… Ah, e por falar em comer peru, também temos polêmicas aí. Porque vi que Xuxa postou algo dizendo: “Celebrar a vida com a violência na mesa?”. Como ela tem esse ativismo em relação aos animais, postou isso, que, é claro, dividiu opiniões. Mas, pensamos bem, deve ser bem complicado um vegano cear com uma família que tem na mesa um saboroso pernil pra ser devorado por todos. É uma questão que eu acho bem interessante, esta sobre os “assassinatos” de animais para satisfazerem a nossa gula. Mas se durante o ano todo muitos ignoram isso, não vai ser no Natal, nesse único instante, que a pessoa vai mudar. E não tem como disfarçar, a pessoa vai comer o pernil, o peru, o porco, em nome do nascimento do Messias. É o único momento que ela pode comer sem culpa, já que todo mundo também está se empanturrando. A gula é quase sempre difícil disfarçar. Uma opinião política sim… (será?). Olha, ainda temos essas questões políticas que dividiram família. Mas nem vamos entrar em detalhes neste assunto porque aí já seria assunto para mil crônicas.

O que sei é que neste Natal, talvez, eu não tenha tanto me banhado desse tal espírito Natalino. Foi uma opção. Afinal, acho mesmo que temos um ano inteiro, 365 dias para nos lapidarmos, tentar ser melhores como seres humanos. Todo dia deveria ser Natal, este momento de celebração da vida, do amor. Momento de ESTAR presente. Porque muitas vezes o Natal é lembrado pelo momento terrível de enfrentar filas para comprar o presente para a pessoa querida (ou não, se for aquele amigo oculto onde você não escolhe a quem vai presentear). Enfim, ontem até pensei em escrever aquele texto lindo com alguma mensagem natalina especial. Quase sempre faço isso, durante muitos anos. Ontem liguei o computador e simplesmente não consegui. E aceitei este novo momento, porque prometi a mim mesmo respeitar as minhas reais vontades e não fazer algo em função de agradar o outro. Desliguei o computador e fui celebrar com a família. E como sempre fizemos a nossa prece, dissemos palavras especiais sobre o que estávamos sentindo no momento. E, sim, foi especial. Foi simples, espontâneo. Como disse que não estava no espírito natalino, pelo menos este espírito convencional. também não deixei nenhuma mensagem nas minhas redes sociais, desejando feliz Natal a todos. E também não peguei o celular como antes para desejar feliz Natal para as pessoas que amo. E, quer saber? Foi uma experiência libertadora. E acho que foi a primeira vez que não recebi tanto “FELIZ NATAL” das pessoas. (Será que elas também fizeram esta experiência? rsrsrs). Porque muitas vezes só somos lembrados neste dia do ano. Talvez, nem lembrados, porque simplesmente podemos estar na “lista de transmissão” de alguém. Então, você pode ter aquela surpresa: “Ah, que legal, Fulano lembro de mim…” Não quero estragar essa sua crença… Mas você pode apenas estar na lista de transmissão da pessoa, ok? Ah, Papai Noel não existe também… (risos). Olha, sei que este texto ficará maior ainda, acredito que não estamos nem no meio. Mas, calma, que ele ainda vai ficar melhor. Prometo. E, no momento que eu escrevo isso, vejo minha mãe passar com o gorro de natal em sua mão, já sem a importância de ontem. Ou seja, o que acontecerá agora? O gorro vai voltar para o armário. Estará abandonado lá até o Natal do próximo ano. Então, antes de eu avançar nas minhas reflexões, lanço uma pra você. Quantas coisas prometidas no Natal e na virada de ano você já abandonou e nem se deu conta? Hein? Hein? ………………….

Agora vamos a uma reflexão pessoal e familiar. Vocês vão entender porque falei do casamento dos meus pais acima e de comemorações familiares. Ainda pouco vi uma foto do meu pai no face. Ele estava sorridente com um gorro de Papai Noel na cabeça, celebrando o Natal com a família da sua esposa. Bacana, legal ver meu pai celebrando o Natal assim. Mas nem sempre foi desse jeito. E acho que é a primeira vez que escrevo sobre isso. Já falei muito sobre o que foram os Natais da minha vida, mas escrever desse modo é a primeira vez. Como este ano me vi várias vezes falando sobre constelação familiar, já que minha irmã e namorada fizeram, eu comecei a pensar muito nessa raiz tão importante em nossas vidas, que é pai e mãe. E acabei me voltando várias vezes à minha infância para entender a feridas que ainda me machucam hoje, apesar de eu ser um homem feito. Interessante também que encontrei uma colega na rua e acabamos também falando sobre constelação familiar, então, acredito que em 2020 tenho mesmo que fazer a minha. Sei que vai ajudar muito. Mas, voltemos um pouco sobre o que eu quero falar. O Natal muitas vezes foi uma data que lembrava tensão, em relação ao meu pai. Ele mesmo tem um histórico familiar complicado (mas cabe a ele ter entendido ou não esta parte da sua vida). E quando chegava no Natal parecia que isso batia nele de um jeito bem mais forte. E a coisa era tão complicada que até a data de aniversário dele não era precisa. Muitas vezes ele comemorou o aniversário no dia 24 ou 25 de dezembro - nem lembro agora direito. Até que um dia ele descobriu mesmo que o aniversário dele era dia 14 de dezembro (ou seja, até o signo muda na história). Que loucura isso, né? E, como ele era gerente de loja, muitas vezes estava trabalhando no dia 24 de dezembro, e como tinha fechamento de contas, ele só chegava bem tarde em casa. E quase sempre estressado. Os Natais que lembro, em sua maioria, eu passava com a família de minha mãe. No dia 25 de dezembro ia a casa da minha avó por parte de pai (que nem é mãe de sangue dele, mas isso é outra questão e eu só descobri isso mais tarde). Assim eram os meus natais. Mas disse que a lembrança desta data tinha a ver com tensão, né? Explico. Meu pai enquanto era casado com minha mãe tinha uma personalidade muito difícil de lidar. Era meio que agressivo (não de bater em mim e na minha irmã ou mãe - quer dizer, teve uma vez que ele me bateu com a fivela do cinto e ficou marcado e minha vó teve que chamar a sua atenção. Enfim…). Mas era uma agressividade ao lidar com as coisas. E isso parecia que aflorava no Natal. Como uma vez em que voltamos de um Natal feliz na casa da família de minha mãe e minha mãe levava para a nossa casa uma caixa com salgadinhos e doces e o presente que meu tio deu para o meu pai (era uma camisa social - ele o havia tirado no amigo oculto). Então, ao chegar na nossa casa, morávamos em uma vila, tinha um portão de ferro na nossa casa, e lembro que meu pai veio nos receber. Antes de entrarmos em nossa casa, meu pai bateu na caixa com os salgadinhos e doces e tudo caiu na rua. E também pegou a camisa que meu tio havia dado a ele e a rasgou inteira. Muitas vezes a gente pensa que esquece algumas dores. Mas, ao escrever isso agora, eu choro com essa lembrança. Ou seja, nós que estávamos felizes, de repente, nós víamos tristes. E é apenas uma das lembranças ruins que guardei dos Natais enquanto meu pai era casado com minha mãe. Porque nessa época nunca sabíamos como ele agiria. Uma vez lembro de ele chegar do trabalho, tarde da noite, com aquela cara fechada. E a gente tenso ao recebê-lo (para vocês terem uma ideia, a época em que moramos nessa vila foi de 1982 a 1983, ou seja, eu tinha 8 e 9 anos - bem criança mesmo). E aconteceu algo que mudou o seu humor, incrivelmente para melhor. Estava acontecendo uma confusão na casa que ficava na esquina da vila. Era uma briga por causa de trânsito. Se não me engano, três garotões estavam agredindo um senhor, que era o dono da casa. Eles o empurraram e parece que o senhor caiu no chão. Um rapaz, que trabalhava na casa dos meus avós, estava em casa conosco e comentou com meu pai a confusão. Meu pai colocou a cara na porta de casa e, ao ver a confusão (o senhor era amigo dele), não pensou duas vezes e correu até lá. De longe, vi meu pai dando socos nos três garotões que, ao serem agredidos, acabaram correndo dali. Ao longe, vi a briga toda. Havia uma galera em volta. E eu vibrando por ter um pai herói (isso aos olhos de uma criança é muito louco e forte). O que sei é que meu pai voltou pra casa e tivemos um Natal tranquilo e especial. Parecia que ele tinha relaxado ao pôr pra fora alguma fúria existente dentro dele na época natalina. E relaxado, pode estar em paz conosco.

Outros Natais que me lembro de comemorar com ele, era quando ele bebia. Aí ficava alegre e íamos a casa da sua mãe. Ele virava outra pessoa, rindo, divertindo-se e celebrando com todos. Esta também é uma imagem nítida na minha cabeça.

De qualquer forma, como falei da agressividade do meu pai, ela se manifestava assim. Uma vez, depois de ele ter discutido com minha mãe, lembro de vê-lo quebrar uma televisão no quintal de casa. E teve outra vez, de madrugada, após uma briga com minha mãe também, ele virou o guarda-roupa em cima da cama deles e minha vó - mãe da minha mãe que morava no apartamento em cima do nosso - teve que intervir (obviamente que minha mãe não estava na cama. Ele nunca encostou o dedo nela, mas extravasava a sua raiva assim). Em outro momento, perto do aniversário da minha mãe, - a minha vó deu a ela um pacote de mexilhão, se não me engano. E lembro do meu pai, ao discutir com minha mãe (sempre isso), jogar este pacote da varanda do prédio em que a gente morava. Morávamos no terceiro andar. E eu desci para pegar lá no chão do prédio. Depois dessa discussão, o casamento dos meus pais chegou ao fim. No aniversário da minha mãe, 22/05/1990, ela anunciava que ia se separar. Minha vó, é claro, ficou chocada ao saber que meu pai jogou o que ela tinha dado para minha mãe do alto do prédio. Chocada é eufemismo. Minha vó ficou aborrecida mesmo.

E sobre essas questões natalinas e meu pai, quero encerrar dizendo uma coisa: eu dou graças aos céus de ter a arte como minha forte aliada. Porque sim, a arte tem esse poder de cura. Então, em 2001 eu fui convidado a fazer um trabalho para a prefeitura do Rio de Janeiro. Eu teria que escrever e dirigir um texto teatral de Natal inspirado no clássico Um conto de Natal, de Charles Dickens, e que seria encenado em comunidades cariocas. Peguei uma tradução para ler e busquei algumas referências pessoais para criar a peça de teatro. O original nos apresenta o personagem Scrooge, que é um homem de negócios, velho e ranzinza. E sempre que chega o Natal o seu humor piora e muito (isso me pareceu bem familiar, né?). Nessa situação eu vi a chance de pegar essa minha ferida e jogar na arte. Mantive algumas coisas do original e me deixei levar pelas minhas lembranças de outros Natais. E além de escrever o texto, fiz questão de fazer o tal personagem ranzinza, como forma de me ver por dentro daquilo. E batizei o texto com o título: “O homem que não gostava de Natal”. E assim, pude entender melhor a minha dor e fazer com que realmente o personagem se transformasse, dando-me uma espécie de alívio emocional. As apresentações do texto foram ótimas e naquele ano o meu Natal foi intensamente feliz.

Enfim, como Natal tem essa coisa de família, refleti sobre isso e é algo que faz parte das minhas memórias e histórias. Claro que meu pai não é mais o cara que ele foi. Ainda bem. Mas durante muito tempo isso foi uma ferida pra mim. Achava muito egoísmo da parte dele agir assim, só pensando na sua dor, quase como uma cavalo de rodeio que fica dando coice a torto e a direito porque algo o machuca. E nós - eu, minha irmã e minha mãe - sofremos com isso, com as suas ações. Hoje, tendo experiência e anos de estrada que me ajudaram a compreender as coisas, aprendi a perdoar tudo e todos. Já perdoei meu pai muitas vezes. E, ao me tornar pai, tentei ser o mais presente pro meu filho - mesmo que morando em outro Estado (eu moro no Rio de Janeiro e meu filho mora em Belém). Queria que meu filho sentisse que pode contar comigo. Que eu serei sempre o seu amigo, o seu melhor amigo. Que possamos falar sobre tudo e que nada seja ferida em nós. Porque durante muito tempo esse comportamento do meu pai foi ferida em mim. E, como budista, tive que ressignificar tudo e entender o que isso quis e quer me dizer e, só assim, perdoar o que meu pai fez, mesmo que sem consciência do que esses atos representavam. Eu o perdoo como forma de deixar a vida fluir. Como forma de me permitir vê-lo de outro jeito, celebrando até o Natal com gorro de papai Noel na cabeça. Afinal, eu sou parte dele. E devo a ele o principal: a vida!

Acho que, no fundo, isso é algo muito forte no espírito natalino: o PERDÃO! E só nos voltando para as nossas vidas, podemos fazer essa pergunta: “O que precisamos perdoar para seguir em frente?”.

O Natal é tantas coisas e nós podemos escolher o que ele pode ser. Sejamos o perdão e sejamos essa força de um único instante nos próximos dias que virão. E, assim, um vasto caminho de possibilidades surgirá a nossa frente. Ah, e Feliz Natal! Afinal, a gente percorre um ano inteiro para chegar a 25 de dezembro! E eu que já carrego 45 natais…? Tantas histórias. E hoje eu resolvi dividir algumas com vocês. E, acreditem, sinto-me mais forte e mais renovado. Obrigado por terem lido até aqui. Até a próxima!