O quase herói de Vila Emília

Dorival, vulgo Azeitona, era o que poder-se-ia chamar de um negro franzino, mas forte.Desses homens que desde menino pegou no pesado para sobreviver.
Fiscal do "rapa" na prefeitura há 18 anos, desses que apreendem ambulantes pelas ruas, Azeitona, agora com 38, está casado e mora na Vila Emília na, periferia de São Paulo, com a mulher e 4 filhos.
Afeito à cachaça e à cerveja,embora sempre negasse, ,encontramos o nosso herói em casa,descansando com a 6a. "loira gelada" encima da barriga e pensando na vida.
Desde que se casara , há uns 15 anos,ele não tinha tido emoções novas.
A sua vida era simplesmente um tédio, uma monotonia, tanto no trabalho quanto em casa, e ele,com a chegada do fim do ano, matutava no que poderia fazer para dar um novo colorido à sua vida, mesmo que por alguns momentos.
O campeonato de futebol já acabara este ano,e o seu time perdera,para
variar,o que tornava este fim de ano ainda mais aborrecido.
O Papai Noel na sua casa nunca existiu e também as crianças nunca acredita-
ram ,mesmo porque o único papel que lhe coube, no presépio da escola, foi o de Baltazar, uma vez que um Papai Noel afro-brasileiro seria impossível,com mais um motivo para tentar fazer algo diferente este fim de ano,até para alegrar seus filhos.
Isso mesmo ! Porque não pensara nisso antes : correr na São Silvestre.
Resistência física ele sempre tivera,ainda mais para quem vivia correndo
atrás de ambulantes.
Depois, quando era criança, foi muitas vezes o campeão das corridas, com a molecada do bairro.
Tá certo que só isso não seria o suficiente,entretanto talvez não fizesse
tão feio ; e se ele aparecesse então na televisão, seria a glória do Jardim Sta. Emília,onde morava.Seria falado pelo bairro durante muito tempo,e assim conseguiria ter destaque como um atleta, saindo do marasmo no qual sua vida mergulhara.
A família receosa apoiou, com certa relutância, pois não achava que
Azeitona estivesse em condições , já que há pouco tempo,quando fizeram uma gincana na rua, na corrida de saco ,Azeitona foi o último e que não só não chegou ao fim,como desmaiou na metade da corrida,que segundo ele de mal súbito mas quem o conhecia a causa mesmo foi da “mardita”.
De qualquer forma, no dia da corrida lá estava o nosso herói com seu
calção amarelo, camisa do Corinthians e com o tênis do filho,furado na
sola,na qual ele havia colocado um pedaço de papelão para proteger o pé.
Ele largaria numa colocação que certamente poder-se-ia classificar de desistimulante,pois à sua frente parecia que estava toda a população de São Paulo...e do mundo...
E foi dada a partida ... Bem; Azeitona não ouviu nada, mas saiu correndo,
quer dizer, saiu arrastado pela multidão.Ele simplesmente não largou,foi
largado ...
No acotovelamento de saída já tomou uma cotovelada no estômago e
um pisão no pé, de um crioulo de 2 metros,,de cheiro duvidoso,que ele houve por bem não reagir,pelo ”espírito esportivo”.
Era uma empurra-empurra desgraçado, e, diga-se de passagem, o nosso
Azeitona nunca se espremeu tanto.
Já estava com a língua de fora,e arrependido até os ossos desta idéia
tão infeliz, quando o papelão que forrava seu tênis se desgastou fazendo
com que surgisse uma belíssima bolha na sola do seu pé.
Mancando, cansado, todo mundo passando por ele, até um velhinho que
ele jurava ter no mínimo 70 anos, deu-lhe uma vontade de ir ao, como
ele diria, mictório.
Segurou, em nome do estrelato, o quanto pôde, até que passando por um
botequim entrou célere como um foguete.
Agora aliviado,e sabendo que não iria ganhar nada mesmo,resolveu recuperar o fôlego e matar a sede com uma cachacinha rápida.
Acontece que Azeitona se esquecera de que ele nunca ficava só na 1ª dose e assim vieram a 2a, a 3a,a 4a. quando, já tonto, se lembrou da corrida,e ato contínuo saiU em desabalada carreira para recuperar o tempo perdido."Mas cadê os outros ?" O álcool lhe entorpecia a mente.
"Ah ! já sei vou cortar caminho."
Escurecia rapidamente, e Azeitona entrando e saindo de ruas totalmente
desertas , tornava-se no mínimo grotesco com seu shorts amarelo e a camisa do Corinthians parecendo um peru bêbado.
Acontece que, meio anestesiado e perdido o percurso,procurava não se perder muito dos outros corredores que no caso serviam de referência,mesmo ‘a distancia ....
Resolveu sentar na guia e esperar o fogo passar .Dormiu...
Chegou em casa uma da manhã e contou toda estória para a mulher
que o aguardava com o cabo de vassoura na mão.
- Ô mulher,você não me viu na televisão ?
-Que televisão que nada seu safado, eu sabia que essa estória era pra
me enganar.Olha só que bafo de cachaça ! Tava na gandaia até agora
né ? seu sem vergonha !!!

Até hoje, no Jardim Sta. Emília, ninguém esquece desse 31 de dezembro; da mulher correndo atrás,com a vassoura,do já cansado Azeitona,com
aquele calção amarelo,a camisa do Corinthians,e mancando de uma
perna por causa da bolha na sola do pé.