Desencontros

Chove.

Paro no mesmo bar de sempre.

Um vira-lata atravessa a rua sem olhar para os lados.Os vira-latas são seres solitários totalmente indiferentes à vida.Talvez sejam suicidas em potencial.

Penso na minha vida e na dela.Na nossa distância...

Sento-me à mesa de onde posso ver as pessoas que passam pela rua.O palco da solidão está armado.

Um carro bem velho pára ao meu lado, à altura da mesa em que estou.

Atrás, quase que ao mesmo tempo, para um carro de luxo.Dele desce um homem de chapéu, de barba, um tipo caipira rico e entra no carro velho.É de uma mulher...Ela deixa o pisca alerte aceso.

No banco de trás está uma criança de uns 3 anos brincando com um ursinho de borracha, ou algo parecido e que de vez em quando dá uns gritinhos, que percebo daqui desta mesa de bar.

Não dá pra ver nem ouvir direito.

Não costumo me interessar pela vida alheia, mas neste momento, só, sem ter nada que me distraia a atenção, meus sentidos se voltam para aquele carro velho com o pisca alerte ligado.

Dentro do carro está embaçado.Continua chovendo...

Não consigo afastar minha atenção.Os dois parecem discutir.

O garçom sem me perguntar, e já me conhecendo um pouco, coloca à minha frente outra dose dupla de conhaque.

O farol vai alternando as imagens verdes e vermelhas que dão um colorido triste a este palco do teatro da vida.

De vez em quando o homem de chapéu levanta o dedo em riste parecendo ameaçar a mulher.Ela se esquiva e passa a mão no rosto enxugando alguma lágrima.

Ele ameaça descer do carro.Abre a porta e põe a perna para fora... mas não se decide e volta atrás.

Casais entram no bar atestando aos pares a minha solidão alcoólica.

Uma moça, num gesto de carinho alisa os cabelos do namorado despertando em mim uma inveja que eu pensei não ter mais na minha idade.

Com mais um “choro” no conhaque tomo meu último gole.

No carro velho lá fora a situação está inalterada; parece que os dois tentam entrar em acordo escancaradamente sem sucesso.

Ele nem tirou o chapéu...Desce irritado e bate a porta do carro com força.A mulher colocando as duas mãos no rosto provavelmente chora.

A criança, no banco de trás do carro, brinca inocente com seu ursinho, alheia àquilo tudo, sem saber que dividira comigo a platéia de mais um desencontro da vida.

Levanto-me e volto pra casa, atravessando a rua, como aquele cachorro vira-lata.