Sadismo

No filme Pompeia - inspirado na fatídica destruição de uma cidade por um vulcão - muito me chamou a atenção, sobretudo, a maneira como os prisioneiros/escravos eram tratados. Nesse longa, além de os homens escravizados serem privados do convívio social em uma cela, também eram forçados a digladiarem-se em um coliseu repleto de espectadores sádicos, entre esses o imperador. Apesar de ser uma ficção esse caso específico, fica evidente - mesmo assim- o quanto era prestigiado por todos, na época, o entretenimento em que seres humanos se enfrentavam com espadas, decapitavam-se/mutilavam-se: devido ao tamanho da arena e a capacidade de ocupação dessa.

Prazer semelhante a esse, pela tortura/humilhação, houve durante o período escravocrata aqui no Brasil e em outras nações: o que, assim como o fato acerca dos gladiadores, pode ser confirmado em registros históricos. Nesse período, tanto os senhores, quanto as sinhás; ainda que não quisessem segurar os chicotes ou preparar os aparelhos de tortura, eram complacentes e apreciadores assíduos de tal violência. Esses encarregavam os capitães do mato da tarefa física de torturar, enquanto degustavam a cena degradante - com a saliva a escorrer pelos lábios- sentados como espectadores. No filme "Django livre" e "12 anos de escravidão" é possível ver algumas torturas muito praticadas; como o "forno", no qual o escravo era colocado em uma caixa de ferro, sob o sol, e era deixado a mercê do calor infernal e da aguda desidratação.

Todos esses fatos comprovam o quanto é cultural a indiferença e até o prazer pela exploração/castigo na história da humanidade: mesmo para quem não é o explorador. Posso citar também a inquisição e a espetacularização da morte através da fogueira, os "eventos" de enforcamento e crucificação, o reinado sanguinário de Leopoldo na Bélgica; bem como os "esportes" cujas vítimas são animais: exemplo disso são as rinhas de galo e as touradas. Outrossim, faz-se oportuno percorrer os eventos históricos até os dias atuais, para abordar a conduta de uma instituição que possui, com respaldo constitucional, a força e o poder como ferramenta de trabalho. Essa instituição, a polícia, emergida em uma sociedade cruel - não pacifista - e de posse do poder da lei, é responsável pela criação de terroristas - os que gozam pelo sofrimento alheio - entre os seus membros: sem generalizar, obviamente.

No último dia primeiro, domingo, jovens - em sua maioria menores de idade- foram mortos após uma tentativa de "dispersão" da polícia: versão essa desmentida pelos vídeos que circulam nas redes. Imagino esses jovens ao longo da semana anterior, nas escolas e bairros próximos, em total frenesi pela festa que iria acontecer. Além de outros que foram por pura curiosidade: pode ser que até escondidos dos pais. Tal festa era um baile de rua para periféricos em uma localidade periférica que não possui outra opção de lazer para a juventude. É muita inocência/alienação/malícia estigmatizar esse baile apenas pelas ilicitudes que lá ocorrem, pois esses desvios são iguais ou menores aos que acontecem nos carnavais de rua, raves, boates, etc.

Comparo o cenário da tal dispersão, tomando algumas filmagens que vi, a um espetáculo de acuamento de uma presa, no qual o capataz/predador aterroriza sorrateiramente e prazeirosamente as suas vítimas/presas até que essas se matem: através do sufocamento, pisoteamento, ou ao pularem de um penhasco num salto para a morte - isso por perceberem-se sem saída. Nove vidas se foram enquanto seus algozes/responsáveis sorriam - conforme aconteceu no incidente dos 80 tiros- por imenso prazer e satisfação. Incumbir a polícia - poder executivo- de resolver o problema do lazer e das drogas é cobrança indevida, pois a polícia ataca o sintoma, o fim, não a causa. Por isso responsabilizo também o estado por todas essas mortes. Entretanto, o sadismo não há como negar: seja pelos governantes, pela polícia e pela sociedade que aplaude e exalta ocorrências como essa. Somente os sádicos são capazes de “coisificar” uma vida e, após, dormirem em paz. E por sermos uma nação cuja maioria é formada por cristãos, suponho que deve haver algum trecho na bíblia que legitime essa gente na vocação de inquisidor, que é aquele que expurga o mal existente em alguém ceifando a vida.

John Canere
Enviado por John Canere em 05/12/2019
Reeditado em 13/01/2021
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