O MAIS ILUSTRE DESCONHECIDO

Nossa civilização é tão desconjuntada e insólita, que fica difícil escrever algo sério e profundo, por dois motivos principais: - o enfado e postura crítica da maioria de nossos iguais, que preferem falar a ouvir ou ler, e estão sempre prontos a rebater qualquer argumento; – não há como falar seriamente sobre nosso mundo, e suas particularidades, sem a noção presente da inutilidade do que quer que se apresente, além do constrangimento íntimo em ver tanta gente arrotando pretensa importância, seja material, acadêmica, social, espiritual ou intelectual.

Quando se apresenta alguém, seja lá pro que for, inicia-se a inevitável e obrigatória lista de seus títulos, honrarias, cargos, histórico acadêmico ou profissional e conquistas, que podem ser ou não dignas, mas serão, sempre, louváveis, aos olhos do vulgo e dos patrocinadores.

Nas várias vezes em que me convidaram a palestrar, antes mesmo que eu aceitasse o encargo, pediram que apresentasse credenciais e histórico. Nunca o fiz. Apenas aceitei falar a um público diversificado, fora do ambiente profissional, quatro vezes. Nessas ocasiões, os que me convidaram, aceitaram minha negativa e vazio identificativo. É claro que o público presente murchou bastante, por falta de estofo publicitário, referente à minha pessoa. Sempre comecei a palestra (que era mais uma conversa), apresentando-me como “uma pessoa comum. Mais um filho de Deus, nessa canoa furada, remando contra a maré.” (perdoe-me a apropriação, Rita Lee). Só não continuei porque, ao contrário da autora, acredito em muita coisa e não duvido da fé, que considero força fantástica e bastante desconhecida, ainda.

Apesar de tentar manter a conversação com os presentes em termos informais, sempre precisava incorporar algum item de perfil histórico, científico, religioso, e aí vinham inevitáveis cobranças por fontes, e mesmo quando, certa vez, pachorramente, as apresentei, nada mudou pra valer. Livros e registros históricos eram confrontados por folhetinhos de tabloides ou algum panfleto ideológico, e os confrontantes berravam sua fidelidade aos seus papéis. Chegou a tal ponto a histeria, que quando eu mostrei o dicionário, com a confirmação do que dissera, recebi a resposta de que o dicionário estava errado, e todos os outros também, se contrariavam tudo que a tal pessoa acreditava. E vários outros presentes aplaudiram. Foi a gota d’água pra mim!

Deixei de falar (ninguém queria ouvir, mesmo), e passei a escrever.

Um amigo nordestino gostou de uns rascunhos meus, e como tinha editora, resolveu publicar meu livro. Como todos sabem, é comum iniciar os modernos alfarrábios com uma apresentação do autor, quando não há orelha oportuna na capa e contra-capa. O título desse livro era “AVACALHANDO TODOS OS TABUS”, e, contra a minha vontade, escrevi o que chamei de “avacalhação do autor”, e iniciei o texto com um subtítulo, em negrito, dizendo que o autor é um “ZÉ NINGUÉM”, com letra maiúscula (por ser um baita zé ninguém). Termino a tal apresentação com a frase: “Esqueça o autor e concentre-se no conteúdo.”

Ninguém, jamais, lembrou-se do autor, e, tampouco, perdeu tempo com o conteúdo.

Fiquei sabendo de uma pessoa famosíssima que resolveu escrever um livro.

Como tal pessoa adquirira a fama por motivos alheios à cultura, e não se interessava em adquiri-la, mas queria passar a ideia de que a possuía, contratou um escritor fantasma, que se dispôs a botar no papel, da melhor forma possível, as tolices despejadas em seus ouvidos.

O livro vendeu mais que garrafinha d’água em congestionamento, mas se podia contar nos dedos de uma mão os infelizes que tentavam entender o que continham aquelas páginas. Porém, em cada evento que comparecia a tal pessoa, centenas de fãs agitavam o livro acima de suas cabeças, apenas para mostrar o empenho em adquirir algo vindo daquele ser.

Acredito que meu livro foi lido por mais pessoas que o dessa persona, ao menos por uns cinco a seis indivíduos mais. Só não foi um “best seller”. Para falar sinceramente, é preciso dizer que foi um “fiasco seller”. A editora fechou, depois de publicá-lo, mas nunca fui acusado de ter sido o causador desse problema.

Já ouviram falar de autor fantasma? Pois existe! Eu sou um deles.

Escrevi alguns livros técnicos, e outros sobre performance comportamental. Todos foram editados por corporações empresariais, e, por me considerarem pouco apetecível, resolveram adotar um autor que tivesse perfil adequado a seus propósitos, e aceitasse a chicana.

Como se vê, só por estas pataquadas, é imprescindível entender que nosso mundo é uma bola quadrada, que navega num barco sem fundo, nas ondas de um poço sem água. E, como dizia Lobato: “Entrou por uma porta e saiu por outra. Quem quiser que conte outra.”

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 21/09/2019
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