Quantos Espaços Vazios Tem nas Câmaras do Meu Coração

Quantos Espaços Vazios Tem nas Câmaras do Meu Coração…

Se eu soubesse que não haveria um depois de hoje, talvez estes vácuos não apertassem tanto o vazio no lugar de quem lá estava.

Meu primeiro impacto diante da inexistência do depois de hoje, foi quando meu primo Irineu, veio nos visitar, como fazia vez por outra. Vinha com meus tios de Araçatuba para tratamento no Hospital das Clínicas e ficavam em nossa casa, por alguns dias. E naquela tarde, ele não voltou. Aos doze anos ele sumiu da minha história de vida.

Alguns meses depois tia Tita, a mãe dele, também sumiu através de uma carta de meu tio para minha mãe. Naquele tempo as notícias quando chegavam, já eram velhas. Não mais houve um depois de hoje com eles.

Um dia estávamos nos aprontando para sair. Não era domingo e nem feriado. Nos meus despreocupados dez anos, apenas segui o fluxo da casa. Pegamos um táxi e chegamos num lugar ainda desconhecido para mim. Várias casinhas. Todas bem juntas e com jardins. Estátuas de mármore e vasos com flores eram os adornos daquele lugar. Extremamente silencioso. Pessoas de cabeça baixa elevavam lenços brancos aos olhos. Entramos numa espécie de capela. Estava sobre um aparador de metal uma caixa de madeira cinza ornamentada com tules brancos e flores amarelas. E lá dentro estava o meu avô. Pai do meu pai. E o olhar do meu pai era de um vazio cheio de tristeza. Foi ali que soube que não haveria um depois de hoje com vovô Oscar.

O apelido que dei para minha tia Eunice, era “Tia de Verdade”. Quando íamos à casa dela nunca precisávamos tocar a campainha, pois estava no jardim em meio às plantas que tanto amava e cuidava. Com as mãos enluvadas de terra, o abraço apertado e quente era inevitável. Tia de Verdade cheirava à folhagens e flores. No rosto as marcas da vida se desenrugavam num sorriso aberto e sincero. Numa manhã singularmente quieta o telefone gritou: Tia de Verdade silenciou seu sorriso, suas mãos, seus abraços… Mais uma vez, não haveria o depois de hoje com minha “Tia de Verdade”.

Outra tia, a tia Percides, muito próxima de minha mãe, confidentes que eram, nos recebia em sua casa com bolinhos de chuva e café coado “indagorinha” como dizia. Casa simples de chão batido. E com incrível cheiro de um mundo espetacular. Tinha um poço no quintal. Tinham roupas branquíssimas no varal. Tinha um abraço no ar. Brincar ali com minha prima Leia era o suprassumo da alegria. Fazíamos bolinho de terra. Coisa inédita para mim onde o cimento era a terra do meu quintal. Algum tempo depois eles se mudaram para um apartamento no Ipiranga. Fomos visitá-la e apresentar a ela meu filho mais novo. Ela sorriu. Foi um sorriso pálido de despedida. Mas eu ainda não sabia que não haveria o depois de hoje, após aquela visita.

Meu pai era de ferro. Assim a criança em mim o percebia. Sempre altivo, trabalhava, estudava, escrevia. Pastoreava suas ovelhas na Igreja Batista da Vila Princesa Izabel. Independente e seguro de si. Carinhoso comigo, filha de sua velhice. Trazia doces, chocolates e até sorvete, debaixo do chapéu e recomendava que não falasse para minha mãe. Dizia que eu era menina levada da breca. Escondia os chinelos dele e depois saía correndo para não ser pega. A primeira experiência de mascar chicletes de bola foi com ele. Acho que foi aí que descobri que meu pai não sabia de tudo. Queria fazer bola e precisava mascar antes, ele não me disse isto e quando fui assoprar, o chicletes foi cuspido violentamente inteiro. A decepção foi dos dois. E nunca mais pedi que trouxesse tal guloseima. Mas agora a decepção era só minha. Ao vê-lo adormecido em seu terno domingueiro naquela cama acetinada e florida. Com sua Bíblia entre as mãos. Seu semblante de ferro era o mesmo. Só não seriam os mesmos os dias depois de hoje sem o meu pai.

Era um dia como todo dia seguinte de todo calendário. Mas a finalização dele foi um marco na minha vida. A primogênita da nossa família deixou seu lugar vago. Um lugar onde a distância entre mim e ela era de vinte anos. Logo que me dei por gente ela já era uma moça feita, como diziam naquela época. Então, a criança pirraçava a moça chamando sua atenção. Corríamos uma atrás da outra pelo enorme corredor de casa. Ela chegava do trabalho e me alugava para fazer-lhe companhia enquanto tomava seu banho e depois ao jantar. Ela não gostava nem um pouco de ficar sozinha e lá ia eu feito sombra atrás dela. E sombrio foi o dia em que minha irmã Ester deitou seu corpo cansado de lutar pela vida, num leito cor-de-rosa sob os perfumes das flores que o cobriam e do silêncio seco nos olhos de minha mãe. No calendário dos nossos dias seguintes não houve mais o depois de hoje.

Nós éramos cúmplices dos rejeitados na vida. Meu cunhado Carlinhos era a famigerada ovelha negra da família. Mas quando olhava nos olhos dele, via uma vida que queria viver. Queria pertencer. Queria ser. E isso nos tornava muito mais próximos do que muitos podiam imaginar. Ele gostava de almoçar em minha casa. Seu prato preferido? Arroz-feijão, carne moída com batatinha. Vez em quando aparecia do nada e eu ia correndo preparar seu prato favorito. E ele, pelos olhos, agradecia. E foi pelos seus olhos, numa cama fria do Hospital Emílio Ribas, que eu soube, outra vez que não haveria mais, com ele, o depois de hoje.

Chegou o Dia das Mães. Dia em que minha mãe resolveu que não faria mais parte do nosso grupo familiar. Sua ausência já era sentida por nós desde que começou a desenvolver o Mal de Alzheimer.

Suas histórias antes de dormir acalentavam minhas noites infantis. Eram histórias inventadas, reelaboradas a cada contada. Por vezes ela dormia no meio da história e eu recostava minha cabeça no seu colo e adormecia inebriada com aquele cheiro peculiar das mães. E este cheiro se dissolveu e plasmou em seus descendentes. Não a vi em seu leito de flores e tules. Não suportaria lidar com a neutralidade dos sentidos.

Basta-me hoje, conviver com esta ausência dela do depois de hoje.

A cada ano o calendário me mostra a veracidade da impermanência do depois de hoje.

Nesse meio tempo, outros dias que não chegaram a ser, que escancaram a fantasia do depois de hoje, se apresentaram através de suas finalizações de ciclos.

Uma finalização após outra, estreitam e encurtam meu círculo familiar, social e profissional.

O que fica de tudo isso nas câmaras do meu coração?

A constatação do efêmero que queremos eternizar.

Ou a desmistificação de que a vida é para sempre.

Ou que amanhã resolveremos o que não conseguimos resolver hoje.

Ou a modificação do nosso valorizar o momento de hoje.

Se não agora, quando?

Mírian Cerqueira Leite

Mileite

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Enviado por Mileite em 05/09/2019
Código do texto: T6737873
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