O Caso Do Robô

O Caso Do Robô

É bastante provável que meus prezadíssimos leitores saibam que nasci cego, que continuo cego e que, por não haver procedimento cirúrgico que seja capaz de permitir meu ingresso no mundo das pessoas videntes, permanecerei cego até o desfecho desta minha atual encarnação.

Também é bastante provável saberem que, ao longo dos meus anos de total cegueira física, sempre encarei com naturalidade e com tranqüilidade a minha deficiência.

O que certamente não sabem é que pouquíssimas vezes me importei com o peso que possíveis preconceitos poderiam impor sobre meus ombros.

Eis a razão pela qual relatarei, a seguir, um dos raros momentos da minha vida em que me senti deveras discriminado por conta da minha condição, ...digamos..., diferente.

Não falarei dos quase dezoito meses no decorrer dos quais tive de lutar exaustivamente para ser aceito em uma escola no município onde resido.

Também não falarei que, por ter sido recusado em todas as escolas públicas de minha região, somente pude estudar em uma instituição privada de ensino, na qual, só foi possível que eu me mantivesse como aluno mediante a generosa oferta de uma bolsa de estudos, já que minha família não podia arcar com os elevados custos inerentes à manutenção dos meus estudos em uma escola particular.

Sequer mencionarei que, quando residia em Porto Franco (MA), ouvi de uma das integrantes do corpo docente da escola em que eu me encontrava matriculado a alegação de que, a fim de que fossem evitados prejuízos ao rendimento da maioria dos estudantes, devíamos, os demais alunos com deficiência e eu, estudar em uma sala separada.

Falarei de um episódio que ocorreu quando eu ainda era criança, o qual intitulo “O Caso Do Robô”.

Quando eu tinha seis anos de idade, um colega meu de classe, o qual, por questões éticas, visando à preservação da sua identidade, chamarei de Jota, levou para a escola um robô de brinquedo.

Assim que fiquei sabendo da novidade, interessei-me bastante em brincar com o tal robô.

Pedi ao Jota que me deixasse brincar com o robô por alguns instantes. Mas, ele não deixou.

Vi todos os meus colegas e amigos se divertirem com o robô do jota. Um prazer que apenas a mim era proibido.

Perguntei, então, ao Jota a razão pela qual eu não podia brincar com o seu robô, uma vez que todos podiam e estavam se divertindo muito.

Inocentemente, o Jota me respondeu que não me deixaria brincar com o robô dele porque eu poderia quebrá-lo.

Jurei, prometi, garanti que não o quebraria. Porém, mesmo assim, não recebi, sequer, autorização para tocar o robô.

Passei todo o restante do dia triste. Jamais me havia passado antes pela mente a idéia de que o fato de ser cego podia impedir-me de me divertir com meus colegas e amigos.

Anos depois, minha tia presenteou-me com um robô bastante parecido com o do Jota.

Brinquei com ele por muitos dias. Entretanto, a recusa do jota em deixar-me brincar com o seu robô jamais saiu da minha memória.

Ainda hoje, principalmente em meus momentos de angústia, lembro-me do Jota, do robô, dos meus colegas se divertindo e do que senti quando fui excluído da brincadeira. Todavia, começo a compreender o episódio em questão como um caso bastante ilustrativo de como algumas pessoas ditas “normais”, às vezes, costumam encarar seus semelhantes com alguma deficiência.

Se o Jota não me permitiu brincar com o seu robô, foi motivado por um misto de ignorância e temor. Ignorância e temor que, provavelmente, seus pais lhe incutiram.

Muitas vezes, pessoas com deficiência têm a si negados o acesso pleno à sociedade e o livre exercício dos seus direitos, justamente, por uma nefasta associação existente entre ignorância e temor.

Assim como o Jota tinha medo de que eu quebrasse o seu robô, as pessoas ditas “normais” temem que o ingresso de pessoas com deficiência em seu convívio social quebre as estruturas com as quais estão acostumadas, ignorantes do fato de que o desejo das pessoas com deficiência não é quebrar as estruturas, mas, ter abertas para si as portas da sociedade que as cerca.

Hebane Lucácius