OS ANJOS DECAÍDOS

Fui funcionário público por longos anos. No início, tentava compreender as sutilezas da função. Um pouco depois, tornei-me acidamente crítico em relação a muitas coisas.

Por exemplo, a cada quatro anos assistíamos, ao findar as festas natalinas, uma revoada de presentes sob a forma humana. Eram os chamados cargos em comissão que, em bando, faziam fila para serem cadastrados e encaminhados a suas funções.

Normalmente, arrogantes e temperamentais eram temidos pelos funcionários de carreira. Bastava uma resposta meio atravessada ou a entrega de uma tarefa fora do prazo e o nome do funcionário comum podia parar na mesa de um vereador ou do prefeito.

Eram, em regra, militantes da coligação vencedora ou seres santificados pelo compadrio familiar. Em tempo breve, asseguravam um contrato para controlar e o direito a todas as benesses funcionais possíveis. Com isso, via negociação ou propina, iam amealhando uma poupança considerável para seu futuro.

Curiosamente, e de forma ousada, via neles uma similitude aos casos descritos no espiritismo e nas religiões orientais ao fenômeno da reencarnação.

Pois vejam a comparação. Estes seres surgiam inesperadamente, de alguma pátria político-espiritual. Em cerca de quatro anos, viviam uma vida plena, cheia de carros oficiais. viagens a convite de empresas, pequenas chantagens e pressão.

Findo este período, desencarnavam. Alguns poucos tinham uma sobrevida, mas não era o usual, Ficavam um certo tempo no que seria uma espécie de umbral e, às vésperas de uma nova eleição, ascendiam às colônias, para preparar-se.

Sendo seu partido vencedor, reencarnavam em outro cargo e secretaria, tendo se esquecido de sua anterior vida funcional.

E assim a vida andava até o último acorde da aposentadoria.

E a sinfonia final de suas passagens para o outro plano.

Ricardo Mainieri
Enviado por Ricardo Mainieri em 01/07/2019
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