D. Shirley

A faculdade estava cada vez mais próxima do fim. O prédio, tão grande, apequenava-se ante o medo de deixar pra trás o sonho que eu vivera com tamanha intensidade. Ali, na avenida João Pinheiro 100, eu me encontrara. A menina que, há quatro anos, com o coração pulsante, atravessara o portão de entrada já não existia mais.

Eu me apaixonara tão intensamente pelo curso que a faculdade tornara-se minha segunda casa. Todas as minhas atribuições concentravam-se naquele prédio, que me incitava a mais sincera sensação de pertencimento. As tantas monitorias, a minha querida DAJ, a biblioteca, a sala 10 da pós-graduação, onde eu recebia orientações de pesquisa da professora tão forte e tão doce, todo o ambiente significava um pouco da minha trajetória.

As batalhas acadêmicas e a constante ansiedade jamais conseguiriam retirar o tamanho significado que aquela faculdade detém em minha vida. Já na minha primeira monitoria, eu conhecera o rapaz tímido e fechado que, aos poucos, tornaria-se o grande amor que a UFMG guardara pra mim. Minha família, após alguns meses estudando naquele prédio, crescera: sinceros irmãos e amigos vieram do Espírito Santo e nosso encontro havia provocado minha mais sincera metamorfose.

Eu só não sabia que a metamorfose ainda não estava completa: já nos últimos períodos ela se completaria, materializada no corpo de uma senhora, Shirley, que cruzara meu caminho. Em uma quarta-feira, já ansiosa com as tantas provas e com os afazeres, eu recebera um aviso: Fernanda, a D. Shirley está subindo e quer falar com você. “Agora?”, respondi com certa irritação. “Mas eu tenho uma outra reunião marcada!”. Corri para avisar o outro assistido que nossa reunião atrasaria e, impaciente, a esperava chegar à DAJ. De repente, na porta da Divisão, a vejo segurando um presente: é que o frio chegara e ela me comprara um cachecol, para que eu usasse e me lembrasse dela. Ela me agradeceu pelo cuidado com seu caso e, segurando minhas mãos, pediu a Deus que iluminasse meu caminho. Naquele instante, perdi o ar. Envergonhei-me pela pressa e pela ansiedade. A epifania daquele momento era tamanha que eu já não sabia como agradecer aquela senhora por ter interrompido minha reunião, por ter me entregue muito mais que um cachecol: a certeza de que a minha vocação nunca fora as salas de aulas e que o caminho, agora, seria outro.

A verdade é que eu já suspeitava que aquele estágio não era um acaso e, envolta por aquele cachecol, senti-me inteiramente completa e feliz. Meus estudos acabaram por ajudar aquela senhora, que me abraçava. Aquele trabalho, voluntário, me pagava com moedas muito mais valiosas do que o dinheiro jamais poderia ser.

A doçura em suas palavras tornara aquele momento ainda mais especial e, por um segundo, tive certeza de quem gostaria de me tornar. O sonho do magistério curvara-se ante o poder social do direito e desejei, com todo o meu coração, que a vida permitisse o meu ofício como estagiária tornar-se o ofício de uma vida inteira. Vislumbrei os olhos daquela senhora que, por tão pouco, me agradecia. O direito, no sétimo andar da pós graduação, na sala da DAJ, servia àqueles que precisavam de orientação, que não tinham condições de arcar com um advogado e que precisavam, sinceramente, da nossa formação para situações, pra nós, cotidianas, mas que, pra eles, significavam uma vida inteira.

Coloquei o cachecol enquanto a via descer as escadas e capturava cada detalhe daquele acontecimento em meu coração. Não, eu não iria para um escritório ou, tampouco, passaria a vida no meio acadêmico. Seria professora, era certo mas usaria todas as minhas forças pra viver, diariamente, o poder transformador do Direito.