Crônica de sal e piche

Sou do gênero feminino. E por mais que tenha a resistência de gente calejada da vida, por mais que tenha o amparo das forças universais mais sagradas, sinto o peso do front diário.

Saio pela rua, ao final da jornada das nove arrastadas. Caminho atenta à agitação crepuscular, em que gente de toda parte, ansiosa pelo descanso, se cruza mas não se olha.

Baila em meus pensamentos um tsunami de imagens assombrosas. Sou agora, a criatura mais desabitada do universo! Sujeita à toda interferência externa, como houvesse morrido de mim, e centenas de medos corressem agitados nos trilhos do pensamento.

Observo o tom alaranjado da réstia de sol por detrás dos prédios, e compreendo mais profundo a impermanência das coisas. Sinto o coração acelerar à mesma velocidade do motor da 125 vinda na contramão, trazendo a ameaça de um assalto (violação dos pertences ou do corpo). Concluo que, vezes muitas, ando eu própria na contramão da vida. O que me rouba energia e pesa ao coração. Lembro-me do peso nos ombros. A bolsa abarrotada de livros e a pasta, entupida de papéis a completar o fardo. A estranha que se achega com o filho e partilha a passarela dos andantes, se torna, num átimo de segundo, instante em que me alivia a metade do peso, meu ente mais próximo. Relação de três quadras. Experimento apego na despedida. Sinto o retorno do peso. Os passos permanecem acelerados enquanto o asfalto se infinita à minha frente, à mesma proporção que minhas pupilas dilatam, pelo ódio crescente a cada palavra nauseabunda proferida por passantes machistas. Mundo insano! Aguardo a travessia segura, com olhos baixos para me poupar o enojo de olhares assediosos. A lágrima encontra o reboco no asfalto. Sal e piche. Ainda há tempo!