Dona Domingas - A catadora do Lixo

Naquela madrugada do ano de 1960, livre do ventre da mãe, vinha ao mundo, uma criança incomum pela graça. Negra azulada, olhos cor de pitanga. Por ser um domingo, nome religioso que leva o significado, “pertencente ao senhor”, foi batizada de Domingas. Nasceu no morro do Palácio, numa casinha feita de palha de centeio sustentada por traves de madeira. Minutos depois, seus pais se depararam frente a um paradoxo: livre para viver num mundo de pessoas sem almas. Testemunharam seu nascimento, a lua, o Cruzeiro do Sul, o céu, as estrelas, os gritos e gemidos dos acorrentados, filhos da escravidão. Quadro perfeito retratado por Castro Alves em o “Navio negreiro”. Famílias tratadas como animais e forçadas a dançar sob o chicote dos capatazes.

"Era um sonho dantesco!... o tombadilho,

que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar!...

A infância de Domingas foi cercada pela “maldição da cor”: Ouvir, ficar calada e obedecer.

Muitas vezes conviveu com a “peia”, um tipo de algemas para tornozelos e pulsos, de madeira ou de ferro.

Ao redor desse contexto, os senhores, seus proprietários, comemoravam e festejavam a venda de um ou outro negro, que era anunciado nos jornais: Correio de Victoria, Jornal de Victoria, O Espírito Santense e O Constitucional.

“ AMA de Leite. – Vende-se uma preta, muito moça com cria; sabendo lavar perfeitamente, e bem desembaraçada para o serviço doméstico: é muito sadia, e o motivo da venda: é não querer servir mais a seus antigos senhores, número 75 – sobrado.”

“Nesta tipografia se dirá, quem deseja alugar um moleque de 8 a 10 anos de idade, que seja sadio e de bom comportamento.”

Ironia do destino, os tais senhores, até faziam o sinal da Cruz quando o interessando assinava o contrato.

Por duas décadas viveu e respirou esses ares, cercada pelas belas e imponentes igrejas da chamada cidade Presépio.

Um dia qualquer no final dos anos oitocentos, nas ruas de Vitória, o povo gritava e festejava: - “ Estamos livres!” “A princesa nos libertou!” Era o anúncio da Lei Áurea – Fim da escravidão no Brasil!

Domingas, pendurada no morro e pedindo socorro, vendo a cidade a seus pés, quis festejar, mas, simplesmente, sorria sem palavras com lágrimas no rosto.

Estava livre? Sim! Qual destino?

Como muitos foram morar no morro do pinto no Bairro de Santo Antonio.

Tão logo, arrumou um emprego como catadeira de café em grãos no armazém de café da firma alemã Tordovilli. Mais tarde trabalhou como faxineira em várias casas.

No morro do Pinto, gostavam muito de frequentar a igreja de Santo Antonio. Ajudava o próximo na medida do possível e os padres faziam o mesmo por elas. Dona Domingas não faltava na missa das 18 h, vestida de preto de sapatos e meias, terço na mão e em oração sem muita conversa. Todos admiravam a sua postura, em especial os padres Virgílio e Mateus. Alguns até a ouviam dizer em suas preces: “Que Deus os perdoe pela maldade!”

Infelizmente, a miséria, bateu friamente a sua porta.

Não se quedou ou se abateu! Travestida de um pretérito imperfeito, com rugas e olhos caídos, vestida de preto, corcunda, descalça, levando um saco nas costas e um cajado nas mãos, foi ser catadora de lixo!

Em suas andanças pela cidade fez amigos. Aliás, muitos amigos. De todos os seus admiradores, um italiano escultor de nome Carlo Crepaz, chegou a fazer várias esculturas de Domingas pelo encanto de sua pessoa.

Nos anos 70, o relógio da vida parou e adormeceu para sempre o corpo cansado de Domingas no Bairro de Santo Antonio.

Não foi esquecida! Passou para a posteridade!

Uma estátua feita pelo escultor a fez voltar ao lado do morro do Palácio. Desde vez, feita de bronze frio.

No Carnaval de 1986, a Escola de Samba, Pega no Samba, escreveu no enredo uma linha a Domingas: - “Domingas, a catadora de papel

Hoje tem na escadaria, sua estátua que está vendo lá do céu.”

Hoje...hoje continua lá ao lado do Palácio esquecida pelo tempo. Nem uma placa e muito menos uma biografia.

Em seu “inventário”, há uma lista não de bens materiais! Há uma lista infindável de amigos e pessoas que nunca a esqueceram: Carmen Maria Leitão, Inácia Tristão, Cezar Naime, Nelce Pizzani Rios, José Augusto Loureiro, Idalina Locatelli, Nely Sacapin, Ana Maria Brito, Paulina Garcia, Fabio Trancredi, Roberto Carlos dos Santos, João Luiz, Romildo Raimundo da Silva e muitos outros.

Estêvão Zizzi
Enviado por Estêvão Zizzi em 02/05/2019
Código do texto: T6637404
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