O FILHO DO CAMINHÃO

O filho da caminhão confessou para a sua mãe que era uma berlineta, que por fora podia ser um caminhão, mas por dentro era uma berlineta, se sentia como uma berlineta e iria viver como berlineta e morrer como berlineta e que, se humano fosse seria, por certo, uma borboleta. A mãe, que já desconfiava que o motor do caminhãozinho rateava de vez em quando, acariciou o alto da cabine de seu filho e disse-lhe que procurasse o seu pai, o senhor caminhão, que desse assunto ele seria mais apropriado e em melhores condições do que ela para dar conselhos ou ouvir este tipo de conversa, pois tinha muito mais horas de estrada. Corajoso, lá se foi o caminhãozinho a conversar com seu pai, que estava na garagem a se exercitar com seus pistões. Parou para ouvir o filho, mas antes viu o piscar de seta da esposa lá de dentro da cozinha, como a avisá-lo de que lhe passava a responsabilidade do problema.

O caminhãozinho que se achava berlineta repetiu a estória que tinha contado para a dona caminhonete dizendo ao senhor caminhão, seu pai, que era uma berlineta, que por fora podia ser um caminhão, mas por dentro era uma berlineta, se sentia como uma berlineta e iria viver como berlineta e morrer como berlineta e que, se humano fosse seria, por certo, uma borboleta.

O pai, que também já desconfiava que o motor do caminhãozinho rateava de vez em quando, pensou com seus pneus: "chegou a hora!". Respirou o suficiente para se acalmar e tentar encontrar palavras, as quais talvez já tivesse prontas, sabendo que este assunto viria um dia à tona.

"Meu filho, começou, obrigado pela confiança e por ter me procurado, pai e mãe são os que mais querem o seu bem na vida, pode ter certeza disso. Vou tentar te entender, preste atenção e tente acompanhar meu raciocínio. Sua mãe é uma caminhonete e eu sou um caminhão. De nosso amor nasceu um caminhãozinho que nos trouxe muita felicidade. Agora este caminhãozinho, que é você, fala que é uma berlineta. Ora, sua mãe não é berlineta e eu, quando me olho no retrovisor, vejo que também não sou berlineta. Mas, tudo bem, apesar de pela lógica você ser um caminhãozinho, nosso filho, mas se achar que é uma delicada e frondosa berlineta, vamos te aceitar da mesma maneira, fique tranquilo. Mas se você se olhar no retrovisor, vai ver que é mais parecido com caminhão. Então, para você não se decepcionar vou te aconselhar a ser esta berlineta que você se sente, mas acomodar-se num corpo de caminhão. Isso te fará sofrer menos ao trocar pneus, pois irão te colocar pneus de caminhão e não de berlineta, ao pagar pedágio vão te cobrar pelos eixos que tens e não como veículo pequeno, ao pagar IPVA, seguro, e sair no selfie, serás sempre um caminhão. Para mim e sua mãe será sempre uma criança, mas para a sociedade serás um belo caminhão, apesar de, por dentro, te sentires como uma encantadora berlineta. Quando fores à oficina, para regulagem e manutenção, vais fazer a troca de óleo como caminhão, não como berlineta. Se insistires em uma troca de óleo como a berlineta que queres ser, vais bater pino e fundir o motor. Sei que na escola, nos livros, nos movimentos que estão em moda, muitos fusquinhas estão ofuscados e virando cabriolés e querendo que todos virem, inclusive os inocentes caminhõezinhos como você, meu filho. Fazem algazarra e têm pontos de encontros para ligarem seus pisca-piscas. Mas são gambiarras, perdem valor de mercado e a pureza da originalidade. Na nossa família, nasceu caminhão vai ser caminhão até o fim. Seu tio, por exemplo virou ônibus escolar, um orgulho para a família. Eu, cai na besteira da carga pesada, mas alguém tinha que carregar este país nas costas. Não precisa, responder agora, vá para o seu quarto fazer os deveres e depois nos voltamos a conversar. Tá bem, assim?".

Obediente, de farol baixo e em primeira, o caminhãozinho passou pela cozinha, nem olhou para a mãe, e foi para o seu quarto conversar com o travesseiro.

Na hora do lanche a mãe caminhonete o chamou. Na mesa, olhando para o filho, que ali estava de farol perdido, perguntou: "E daí?" - quase que acrescentou "berlineta", mas se conteve. O jovem caminhãozinho parece que já tinha mudado de ideia, ou surtido efeito as observações do pai. "Sabe mãe, acho que estava sendo muito infantil com a ideia de ser berlineta, acho mesmo que quero ser é um carro alegórico, talvez um trio elétrico". A mãe sorriu, fez-lhe um carinho no "santo antônio" e pensou: "assim pelo menos não vai pegar carga pesada e correr riscos pelas estradas como o pai !"

Armand de Saint Igarapery - textos no FACE e no Recanto das Letras