5 de abril

É sexta-feira, eu acordo com o despertador do celular tocando alto ao lado esquerdo da cama. O sol ainda não nasceu, mas embora eu queira desesperadamente permanecer na cama, preciso ir trabalhar.

Pelo menos é sexta, amanhã vou poder descansar. - penso.

Desligo o despertador sem prestar muita atenção na tela do celular, apenas faço o movimento que já se tornou robótico para mim, levanto-me e coço os olhos ao bocejar.

Assim que meu corpo percebe que finalmente acordamos, sinto um frio na barriga, uma sensação de soco na boca do estômago, aquilo era um lembrete: Você não pode simplesmente ignorar que dia é hoje.

Mas eu preciso ignorar - me auto retruco.

Arrumo a cama como de costume, dobro os lençóis, as cobertas, vou até a cozinha e tomo meu café da manhã. Continuo tentando fazer meus nervos se acalmarem, tem um calendário com números e letras garrafais bem atrás de mim, mas eu resisto em olhar, isso já aconteceu com você? Já tentou esquecer algo que sabe que não tem como esquecer? Porque comigo acontece quase todos os dias, quando eu passo por lugares, estações, trens, ruas, parques. Quando ouço palavras, sussurros, quando sou abraçada, beijada, tocada de qualquer forma.

Mas eu insisto em fingir que sofro de amnésica séria, porque algo dentro de mim diz que é mais fácil desse jeito, mas por que eu não sinto que é tão fácil assim?

Me levanto da mesa cuidadosamente, vou até o banheiro e ligo o chuveiro quente, a água começa fria, mas gradativamente vai se tornando mais quente e minha pele se relaxa por alguns breves minutos de banho.

Eu não costumo lavar o cabelo de manhã, mas naquele instante eu senti que precisava entrar de cabeça debaixo de toda aquela água, senti-la encharcando meu couro cabeludo e sentir as gotas de água escorrendo pela minha pele de certa forma ajudou, naquele momento eu quis chorar, pra ver se conseguiria acabar logo com aquela horrível sensação, mas não consegui.

O que eu mais faço na vida é chorar, é desabar em lágrimas, mas naquele momento eu simplesmente não consegui.

Fiquei tão irritada comigo mesma que desliguei na mesma hora o chuveiro.

O que você quer de mim? - mais uma vez falei comigo mesma, aquilo já estava se tornando um hábito, deveria me preocupar de as pessoas acharem que sou louca?

Sabe, eu adoro escolher roupas. Abro meu armário e me encontro frustrada novamente, aquela sensação boa de dúvida, aquele desejo de escolher a combinação perfeita de peças não está mais comigo. Eu sinto vontade de voltar para a cama e me esconder debaixo dos cobertores, mas ao mesmo tempo me sinto agoniada só de imaginar. Quero sair para o trabalho, mas ao mesmo tempo não quero! Eu só sinto uma vontade gigantesca de dormir, e acredite, não estou falando de estado físico, mas sim de permanecer inconsciente até que aquela data horrível acabasse. A data que há um ano eu aguardei ansiosamente, a data que eu planejei milhões de coisas. Mas que agora me parece ser tão perigosa.

Antes de sair de casa eu vou até o quarto dos meus pais me despedir, meu pai sempre acorda e me leva até o portão, não foi diferente dessa vez, o que me trouxe um certo conforto, afinal pelo menos alguma coisa não mudou.

Corro para pegar o ônibus das 06:20, passei tanto tempo tentando me vestir que acabei me atrasando. Infelizmente eu perdi, o que me fez entrar no trem mais cheio, que demorou uma eternidade para chegar até a minha estação e que resultou em um atraso de vinte e um minutos no trabalho.

Cheguei suada e cansada por ter corrido tanto, meu cabelo estava todo bagunçado, minha respiração ofegante.

Seria um longo dia, eu já sabia disso, e foi mesmo. A partir daquele momento uma maré de azar me afogou e tudo deu errado! Derramei chocolate quente na minha mesa, fiquei resfriada por causa do ar condicionado extremamente frio, fiz uma besteira tão grande com um cliente que minha chefe teve que intervir ou então eu seria massacrada!

Todos perguntavam se eu estava bem, todos puxavam assunto e perguntavam se eu não queria um remédio, já que aleguei estar com aquela cara horrível por conta do resfriado.

Não consegui nem prestar atenção na reunião semanal, eu queria poder olhar para os slides, mas sabia que na tela do computador, mas justamente nesse dia a projeção estava com problemas e por isso a data e o horário estavam estampados em tela cheia junto com a apresentação.

Eu só não conseguia entender o porquê de estar me reprimindo tanto afinal eu sabia exatamente que dia era! Eu sabia, porque desde a segunda-feira eu havia me martirizado horrores com a possibilidade de ter que viver essa data de novo e de novo, todos os anos, só que sozinha.

Após o expediente, decido que no final de semana irei desenhar, afinal isso sempre me acalmou, e sinceramente eu estava convencida de que no momento em que o relógio batesse à 00:00, aquela sensação horrível teria passado, e eu não precisaria mais me sentir tão derrubada e machucada.

Volto mais uma vez para casa, enfrentando o trem lotado, as pessoas mal humoradas, a expectativa de encontrá-lo naquele caminho que eu sei que ele também faz. Mas o que eu faria se o encontrasse depois de todo esse tempo? Fingiria que não o conheço, como da última vez?

Para minha sorte, me mantive ocupada durante todo o trajeto assistindo a segunda temporada de O mundo sombrio de Sabrina no celular, a viagem de volta para casa é sempre longa considerando que moro em outro município agora, mas eu já estou acostumada.

Meu pai foi me buscar no ponto de ônibus porque ele e minha mãe não curtem a ideia de eu andando sozinha por aqui, mas admito que eu também não gosto muito dessa possibilidade, é sempre tão sombrio aqui quando anoitece.

Eu chego em casa e me deparo com minha família à mesa me esperando para jantar.

É a noite do cachorro quente! - eles me dizem, e eu fingir que não esqueci.

Eu estou tão abalada emocionalmente nesse momento que corro para me trocar e ao me sentar na mesa os assusto com minha cara de irritação e cansaço. É nesse momento que eu me lembro de quem segurou minha mão quando tudo isso começou, de quem me ajudou a seguir em frente, foram eles. Percebo que eles não merecem ser meu saco de pancadas emocional então puxo assunto naturalmente, nós comemos, rimos e depois todos eles foram dormir. Cada um deles.

Eu resolvo tomar mais um banho, novamente entro de cabeça debaixo d'água, mas dessa vez ela está fria. Sinto meu coração acelerar, minha pele se arrepia, mas é bom. É bom sentir outra coisa, mesmo que eu possa ser considerada extremamente masoquista por isso. É sempre bom sentir outra coisa, mesmo que seja trocar dor por dor.

Depois de vestir o pijama eu me deito para tentar descansar, mas não consigo. Eu simplesmente congelo na cama e não consigo respirar.

Você não pode ignorar isso - falo para mim mesma, e dessa vez, concordo.

Decidida a enfrentar esse demônio de uma vez por todas eu me levanto da cama e caminho até a cozinha, até o calendário.

E lá estava ele.

5 de abril de 2019.

5 de abril de 2018 e eu estava preparando uma incrível surpresa com bolo e presentes.

5 de abril de 2018 e eu estava decorando um quarto com luzes e música.

5 de abril de 2018 eu comprei seu café da manhã preferido.

5 de abril de 2018 eu o estava ouvindo dizer que aquele era o melhor dia de sua vida.

5 de abril de 2018 ele admitiu que sempre detestou aniversários, mas que dessa vez se sentiu mais realizado que nunca.

5 de abril de 2018 e ele disse que me amava mais do que podia imaginar.

Eu corro para fora de casa, tento não fazer tanto barulho, chego à calçada, sem forças me ajoelho e me deparo com elas, todas as emoções e lembranças que eu estava tentando ignorar. E então, eu chorei.

Eu mudei de cidade, de emprego, de cabelo, de roupas e de amigos, mas nada disso funcionou, porque eu não me esforcei para esquecer, eu me forcei a isso, e quando eu deveria estar plenamente feliz, eu estou entalada com palavras e sentimentos que eu nunca disse. No fundo eu sabia que estávamos destinados a dizer adeus um para o outro.

1 de setembro de 2018 e ele foi embora.

5 de abril de 2019 e eu estou chorando na calçada.

6 de abril de 2019 e eu decido escrever esse texto.

7 de abril de 2019, vai estar doendo um pouquinho menos.

8 de abril de 2019... um pouquinho menos.

9 de abril de 2019... um pouquinho menos.

10 de abril.... Quem é que sabe?

Shirleyne Moreira Niza
Enviado por Shirleyne Moreira Niza em 06/04/2019
Código do texto: T6617180
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