O Canário Encantado

"Os hereges que as religiões queimam e matam não são assassinos, terroristas, ladrões, adúlteros, pedófilos, corruptos. Esses são pecados suaves que podem ser curados pelo perdão e pelos sacramentos. Os hereges, ao contrário, são aqueles que odeiam as gaiolas e abrem as suas portas para que o Pássaro Encantado voe livre. Esse pecado, abrir as portas das gaiolas para que o Pássaro voe livre, não tem perdão. O seu destino é a fogueira. Palavra do Grande Inquisidor".

Rubem Alves, “Palavra de Grande Inquisidor...”, Correio Popular, 22/05/05

Numa crônica que escrevi sobre um filhote de rolinha, a quem salvei de morte certa, creio ter deixado evidenciada a importância da liberdade para qualquer ser vivo, ao soltar o pássaro quando ficou adulto. Um canário apareceu na história como coadjuvante, fazendo companhia à rolinha enquanto esta esteve comigo, pois compartilharam a mesma gaiola. Como coadjuvante, não teve importância maior no texto.

O canário era da minha mãe e eu nunca poderia fazer com ele o mesmo que fiz com a rolinha, pois ele fora dado à minha mãe, como terapia ocupacional para esta, ainda filhote, e crescera dentro da gaiola, não tendo a mínima possibilidade de sobreviver se fôsse libertado.

Esse canário já morreu e fiquei muito triste quando isso aconteceu, pois, nas minhas contas, conviveu conosco por uns quinze anos, tempo suficiente para se criar vínculos familiares até entre seres bem diferentes. Soltava seu canto melodioso todo dia a plenos pulmões, incrível para aquele tiquinho de ser vivo. Cuidar do canário era um ritual diário da minha mãe, rotina que talvez lhe trouxesse um pouco de sentido na fase final de sua vida. Mas a morte do canário tocou-me muito mais do que a ela, pois ao sentir aquele levíssimo trapinho de penas inerte na minha mão, dei-me conta do quanto a vida é efêmera e frágil. Nas suas últimas semanas, adoentado, levara-o várias vezes ao veterinário para tentar salvá-lo, mas foi em vão. Minha última ação para ele foi descer o bebedouro de água ao nível do piso da gaiola, pois sua fraqueza não permitia mais que subisse ao poleiro. Ao beber a água, pareceu-me ver um olhar de agradecimento nos seus olhinhos. Quando fui vê-lo novamente algumas horas depois, estava estirado no piso. Enterrei-o ao lado do pé de tuia do canteiro na frente da casa e acendi uma vela sobre o montinho. Força do costume.

O que, porém, me levou a escrever esta crônica não é sua morte, mas foi ter-me lembrado de algo que me intrigou, acontecido muitos anos antes, quando ele ainda era jovem.

Na época havia um outro canário, que com ele convivia na mesma gaiola, talvez um irmão, também macho, que morreu bem antes do que ele. A convivência, porém, não era pacífica, havendo de vez em quando embates furiosos entre os dois. Como ele era o mais agressivo, quando aconteciam as brigas eu o retirava da gaiola e o deixava como castigo num balde durante certo tempo. Depois eu o pegava envolvendo-o com a palma da mão em concha e o colocava novamente na gaiola. Com o tempo, porém, verifiquei que, para retirá-lo do balde, bastava estender-lhe o dedo indicador e ele se aboletava voluntariamente no dedo como se num poleiro e deixava-se levar assim até dentro da gaiola. Não fazia menção de voar para escapar.

Um dia, curioso com esse comportamento dócil, peguei-o do balde como sempre, deixando-o aboletar-se no dedo e levei-o para dentro de casa, passeando com ele assim pelos cômodos. Porém, após passear bastante pela casa e quando estávamos na sala de jantar, de repente ele alçou vôo, saiu estabanadamente voando pela sala, pelo corredor interno e entrou na cozinha. Já arrependido e assustado pela minha imprudência, corri atrás para tentar resgatá-lo. Da cozinha ele saiu para a área de serviço, onde se achava a gaiola pendurada num suporte pela parede. Para minha surpresa, quando cheguei à área de serviço, ele estava pousado sobre a gaiola do lado externo, agarrado às barras de arame. Deixou-se pegar tranqüilamente pela minha mão, sem reagir, e coloquei-o na gaiola.

É claro que, com medo de perdê-lo, nunca mais repeti a experiência, mas acredito que, se o fizesse, seu comportamento fosse o mesmo, isto é, ele saberia o caminho e voltaria diretamente para a gaiola.

Qual o propósito de contar esse episódio curioso sobre a vida animal doméstica? Quis contá-lo porque me parece representar uma metáfora para determinadas prisões em que nós, seres humanos, às vezes deliberadamente nos colocamos, das quais não queremos sair e às quais voltamos impetuosamente quando nos oferecem a possibilidade de liberdade. Metáfora colocada por Rubem Alves na crônica “Palavra de Grande Inquisidor...”, que detalho um pouco aqui devido ao episódio por mim vivido.

A gaiola representava todo o mundo do canário. Tudo o que estivesse fora daquele domínio conhecido, fora daquelas barras de arame, seria um mundo desconhecido, assustador. Afinal, era ali que diariamente uma enorme mão colocava-lhe uma folha de couve, as duas metades de um jiló e supria-lhe a gavetinha de alpiste. De vez em quando lhe colocavam até uma vasilha com água para tomar banho. Onde encontraria esse conforto lá fora? A liberdade era um sonho misterioso e terrível, que não lhe convinha buscar. É verdade que, de vez em quando, observava alguns seres alados semelhantes a ele, chamados pardais, bicando lá fora no chão os restos que caiam da gaiola. Via-os voando e sumindo no ar. Via-os lutando para sobreviver. Não tinham a garantia da comida certa, precisavam ficar constantemente em busca dela para viver. Não entendia por que não tinham suas gaiolas.

Como serão nossas gaiolas? Uma frase de Friedrich Nietzsche, “Homens convictos são prisioneiros”, que tem norteado minha relação com as crenças, pode ser a base para a conclusão a que quero chegar. O que Nietzsche quis dizer com a frase? Basicamente que toda convicção, toda certeza, é deletéria, pois restringe a visão, apequena a perspectiva. Daí porque homens convictos estão muito próximos de se engalfinharem em embates furiosos, quando defendem posições antagônicas. Homens convictos são prisioneiros porque estão dentro das suas gaiolas de convicções, refratários a tudo que esteja fora delas.

As crenças dogmáticas, baseadas em suposições, não em provas, são como a gaiola do canário, são contra a liberdade. Por sua natureza irreal, não admitem contestações. A base de suas existências é a fé. Fomos criados nelas, fomos alimentados para sermos prisioneiros delas. Estigmatizam-nos desde que nascemos. Padres, monges, sacerdotes, pastores, rabinos, guias espirituais, pais de santo, médiuns, gurus, como grandes mãos provedoras, alimentam-nos diariamente recitando-nos textos de livros sagrados que nos prometem a imortalidade, e assim nos encantam e nos prendem ao seu mundo, à sua gaiola. Se alguém nos leva a passear lá fora, mostrando-nos um mundo livre, assustamo-nos com aquela liberdade, e queremos voltar rapidinho para a gaiola, para o conforto das nossas certezas, dos nossos dogmas, das nossas religiões.

Se aos pássaros tivesse sido dado o dom de se comunicarem, imagino que o canário encantado estivesse muito tentado ao proselitismo ao ver aqueles pobres pardais desgarrados: “Adentrem a Gaiola Encantada, ela consola! Venham à Grande Mão Provedora, Ela salva!”.

Obs: A crônica de Rubem Alves citada pode ser lida na página do site do escritor: www.rubemalves.com.br/palavradegrandeinquisidor.htm

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 20/09/2007
Reeditado em 18/09/2016
Código do texto: T660323
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