Crônica mentirosa

     1. Jerônimo Ramos Ferreira chegou aos oitent'anos firme e forte. Com essa idade, não frequenta farmácias nem consultórios médicos. Frequenta, sim, o bar Veneza, que fica pertinho de sua casa. Bebe apenas cerveja; e como! Nesse bar, conheci Jerônimo, noite dessas.
     2. Papo fácil, eloquente, vibrante, Jerônimo conquista os que dele se aproximam com sua prosa elegante e fértil.      Aproveita, e conta, aos mais íntimos, as mais românticas  e glamurosas, picantes às vezes, histórias amorosas que escreveu ou viveu durante sua longa caminhada.
     3. Casou três vezes. Das duas primeiras mulheres, divorciou-se, e, da terceira, muher linda, vinte anos mais nova do que ele, enviuvou. Tem filhos e netos, que diz serem seus amores.
     4. Jerônimo foi um namorador  de todas as horas. Chegou a namorar três mulheres, ao mesmo tempo, em bairros diferentes, o que lhe permitia ocultar uma da outra, evitando ciumeiras e atritos. Convivia com as três num irretocável "mar de rosa".
     5. Traja-se, mesmo com oitenta, discretamente e com elegância. Gosta de um perfume francês num lenço de linho de variadas cores. Usa sandálias pretas, desde o dia em que se aposentou do Serviço Público. Vive numa inatividade honesta e relativamente bem remunerada.
     6. Muito bem. Traçado o rápido perfil do Jerônimo, falemos dos seus amores, fiel ao que dele ouvi e me foi confido, entre uma cervejinha e outra. 
     Ouvi, que, na vida, ele conquistara belas mulheres, apoderando-se, fácil, do afeto de cada uma delas e lhes penetrando a intimidade com a sutileza e habilidade dos bons amantes.
     7. Num tempo em que as mulheres adoravam ouvir "pensamentos amorosos" de grandes poetas e consagrados escritores, Jerônimo, que amava a prosa de Machado de Assis, usava frases do velho Bruxo nas suas conquistas. 
     8. O autor de "Helena" frequentava sua mesinha de cabeceira. Antes de dormir, Jerônimo passeava solto, descontaído, pelas páginas maravilhosas dos romances de Machado. E o fazia todos os dias. Anotava belas frases que podia usar nas suas próximas abordagens amorosas.
     9. Sabia, quase de cor, de boa parte dos capítulos de "Memórias Póstumas e Brás Cubas", de "Quincas Borba", de "Esaú e Jacó" , e adorava  voltar a Capitu, relendo o polêmico "Dom Casmurro"...
     10. Sem esquecer, claro, os versos de "Crysálidas". Provocado, recitava esta quadrinha de Machado, que também "adotei" como minha: "Flores me são teus lábios/ Onde há mais bela flor,/ Em que melhor se beba/ O bálsamo do AMOR?" 
     11. Lá pras tantas, pedi ao Jerônimo que me dissesse qual a frase do Bruxo do Cosme Velho que o teria ajudado na sua melhor conquista amorosa. 
     E ele: Que certa ocasião, declarou-se a uma linda jovem, que resistia aos seus apelos amorosos, com o olhar preso em uma revistinha qualquer: - "Teus olhos são meus livros./ Que livro há aí melhor,/ Em que melhor se leia/ A página do amor?" 
     12. Um momento, um momento, por favor, dileito leitor: rasguem está crônica. Ela é uma mentira! Jerônimo Ramos Ferreira nunca existiu. Esse econtro, que acabo de narrar, nunca aconteceu. Coisa de quem não tinha o que escrever!
     13. Uma coisa, porém, é certa e foi dita por Machado de Assis: "O amor é o rei dos moços e o tirano dos velhos". Né verdade, oitentões apaixonados? E são muitos...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 26/01/2019
Reeditado em 23/10/2019
Código do texto: T6560105
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