Um ano se acabou

Eh, eh, eh... Último dia do ano, onze horas da noite... E eu ainda aqui no terminal. Vamos ver se consigo chegar em casa antes dos fogos! E dizer que eu já podia estar em casa, não precisava nem ter ido trabalhar hoje! Eu poderia dizer “Senhor, durante esses anos, eu sempre trabalhei no final de ano, mas agora gostaria de uma folga”. Eu poderia dizer, mas não diria nunca. Ora, todos já contavam que eu iria trabalhar, sempre foi assim. Eles sabem que eu moro sozinho e não tenho nenhuma festa para ir. Que eu trabalhe, então! Mas, que diabos, bem que às vezes eu queria uma folga nessas datas. Pelo menos daria tempo de fazer a minha ceia, eh, eh, eh... Bem, bem, se o ônibus não demorar, ainda chego a tempo.

Veja só, quanta gente ainda está por aqui. Não sou o único, logo se vê. Daqui a menos de uma hora todos estarão se abraçando e desejando boas coisas. Olhando assim, a gente nem imagina! Passam todos tão calados, tão indiferentes... É noite de festa! Ah, eu os entendo, Deus, como os entendo. Todos têm as suas próprias preocupações, as suas coisinhas para pensar. E, além do mais, todos estão concentrados em chegar em casa. Você são meus irmãos, são todos meus irmãos. Mas que isso, não é hora e nem lugar para esse sentimentalismo. E lá vem o meu ônibus!

É uma motorista, uma mulher. Ora, ela deve ter família também. Deve ser mãe. Tem um homem ali conversando com ela. Não consigo ouvir direito daqui onde estou. Se entendi direito, a mulher disse que o último ônibus sai à meia noite e cinco. Que coisa extraordinária! Essa mulher vai passar a virada do ano no terminal. Vai ver os primeiros fogos, só que não poderá continuar vendo tudo, porque o ônibus tem que sair. E vai sair vazio, pode apostar. A gente soltando fogos e ela lá, dirigindo à toa... Bem, bem, depois ela deve ir para a casa de alguém, onde vai cear à vontade. Não deve ser tão triste assim.

Que menina mais bonita! Sentadinha no colo da mãe. Parece tão comportada! Eh, eh, olha só esse sorriso dela... Que felicidade ter essa menina como filha. Eu poderia ter uma filha assim, afinal. Eu iria voltar para casa de ônibus e ela iria estar sentada no meu colo e sorriria como essa menina sorri. Como é bom olhar para ela. Mas que é isso, já chegamos ao terminal? Como foi rápido! Eu devia estar distraído. Ah, lá vai a mãe com a menina. Vou caminhar atrás delas. Eh, eh, que bonitinha. É melhor deixar um espaço entre nós e fazer de conta de que não estou nem um pouco interessado nas duas. Se a mãe olha para trás e me vê olhando para elas, não quero nem imaginar o que poderia pensar de mim! Ah, mas elas vão para o outro lado... Paciência! Adeus, menina.

Faltam 20 minutos e eu ainda tenho mais um ônibus, mas acho que dá tempo. Quê? Está saindo já? Espera! Puf, puf... Obrigado! Ah, se eu perdesse esse, só no ano que vem! Eh, eh, eh... Agora não é preciso andar muito, só umas poucas quadras. Ah, aí estamos. Basta caminhar mais um tanto e estarei em casa antes ainda de estourarem os primeiros fogos.

Lá está o porteiro. Tenho que passar por ele e dizer “feliz ano novo”. Bolas, mas ele vai estranhar, eu que nunca fui de puxar assunto com ninguém. E, no entanto, se eu não falar nada, o que será que ele irá pensar de mim? Talvez o ideal seja uma postura intermediária. Não cumprimento, mas respondo ao cumprimento que ele fizer. Vou passar distraído, a mão no celular, ah, o Whatsapp... Estou passando, estou passando, passei... Puxa vida, não falou nada. Ora, vai ver que nem prestou atenção em mim.

Que temos aqui? Já estão soltando fogos? Mas ainda não deu meia-noite! Ah, mas quem aguenta esperar? Como brilham, como brilham! Que coisa mais linda! Já é ano-novo! Um ano se acabou, mas um novo já nasceu. Por quê, meu Deus? Por quê?

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 31/12/2018
Reeditado em 31/12/2018
Código do texto: T6539748
Classificação de conteúdo: seguro