Consolo a uma ovelha negra

Você me diz que a sua família não o entende e que tampouco você entende a sua família. Que eles, os seus parentes, enxergam a vida de modo bastante diverso do seu. Que há uma luta diária para se fazer entender, e que eles são da opinião de que você faz de tudo para contrariá-los, como se fosse proposital, e não a simples expressão da sua individualidade. E que tudo isso lhe dá um desejo cada vez maior de se mudar e morar sozinho, quando não terá mais que prestar contas de tudo aquilo que faz ou que pensa.

Às vezes, bem que você gostaria de pensar de um modo diferente e tradicional, mais condizente com o ambiente em que foi criado, mas o fato é que não consegue e, mais cedo ou mais tarde, aparece uma questão que ressalta a distância, o abismo, que existe entre você e aquelas pessoas que, embora não pareça, são sangue do seu sangue. Você até chega a se questionar se é realmente descendente da família. Pois como é possível que tenha nascido assim, tão diferente do senso comum? Eu olho para você e lhe digo que você tem a mais a ver com a sua família do que imagina. Você foi engendrado por ela durante muitas gerações, e apenas agora pôde vir à tona.

Por exemplo, você não quer casar. Toda a sua família cobra um relacionamento que você não quer ter. Mas pense na quantidade pessoas na sua árvore genealógica que também não queriam se casar, mas foram levadas a isso por pressões sociais. Ou até nas pessoas que queriam se casar, sim, mas que depois se arrependeram, sem, contudo, ter condições de dar um grito de liberdade e pedir a separação. Hoje você dá um grito de liberdade que seus antepassados não puderam dar, ainda que quisessem. Você exprime o que eles apenas desejaram, sem poder concretizar.

Ao contrário de sua família, você está longe de ser uma pessoa religiosa. Não sabe se existe um Deus ou não, mas não lhe agrada o ritualismo das igrejas. Pense também nos seus ancestrais, tão devotos pelo lado de fora, mas carregando internamente muitas dúvidas a respeito das próprias crenças. Viam coisas que julgavam contraditórias, mas achavam melhor não pensar sobre elas. Pois, se pensassem demais, o que sobraria a eles, fora da religião? Pense no medo que orientou algumas das manifestações mais pias de seus antepassados. E em como agradaria a muitos saber que era possível a vida fora dos ritos sagrados.

Suas posições políticas batem de frente com as de sua família. Você tem um olhar sensível e crê que é preciso uma visão mais humana e tolerante sobre a realidade. Mais uma vez, convido-o a imaginar todos os seus ancestrais que assistiram ou até cometeram crueldades, sob as justificativas mais cínicas, apenas porque a crueldade estava na ordem do dia. Houve o momento em que alguns deles tiveram compaixão e acharam que não deviam fazer o que pediam deles, mas então terríveis consequências sobreviriam sobre eles, e por isso desistiram. E hoje você tem coragem de colocar a compaixão acima de qualquer política.

Se pensar bem, verá que é assim com todas as outras questões. Você não come carne, e houve, por certo, um ancestral que, ao testemunhar o abate de animais, refletiu que aquilo era terrível, mas não fez nada contra, porque todo mundo comia carne. Você não bebe, e quantos tataravós não quiseram chegar a esse ponto, mas bebiam porque a sociedade exigia, e bebendo eles chegaram ao alcoolismo ou à cirrose.

O que quero dizer é que isso que você tem de tão diferente são desejos reprimidos da sua própria família. Calhou que eles viessem à tona em você. E agora você é capaz de indicar novos caminhos, que lá na frente, depois de você, gerarão outros, porque a vida é movimento. E, sabendo disso tudo, não há motivo para se revoltar contra a sua família. Você é o sonho deles. E eles são a sua trajetória de vida.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 09/11/2018
Reeditado em 11/11/2018
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