E o que guardo são as jabuticabas de Seu Jorge

Anos 80 foram tempos gloriosos.

Quem não nasceu nesta época, perdeu algumas preciosidades,

mas também nada com um filme desse de Sessão da Tarde que não nos traga a sensação.

Eu mesmo, acabo relembrando:

A roupa suja de barro, a bicicleta com o guidão enferrujado, os ralados no cotovelo e joelho.

Fui um garoto típico em meados de 1985. Morava numa rua tranquila, parte asfaltada, parte terra, mas a vizinhança toda se conhecia.

E eu conhecia Seu Jorge.

Seu Jorge foi um soldado, militante. Todos da rua sabiam suas histórias. As guerras que batalhou, ganhou, as lutas que praticava. Os prêmios e medalhas que conseguiu com seu esforço.

Admirava-o muito, mas o que me interessava mesmo era o pé gordo de jabuticaba que tinha no quintal dele. Mesmo com o muro de grades pontiagudas, as pontas da árvore carregadas de bolinha preta sobressaíam entre elas.

Só de olhar já ouvia o "ploc". Delícia.

E quantas vezes não fazíamos planos de pegar? Muitas vezes o Seu Jorge via e jogada pequenas pedras em nós, gritando de ódio.

Ele só deixava pegar de verdade aquelas delícias depois de horas e horas dos seus contos históricos da época de militante.

Não esqueço de uma vez que eu e dois amigos, ao jogar 'bets' na rua, fomos nos aproximando da casa dele. O pé de jabuticaba não estava mais tão carregado, apenas na parte baixa. Resolvemos, então, falar um oi. Sabíamos que não seria fácil ficar horas ali, mas o importante que eu ia me lambuzar de jabuticaba.

Tocamos a campainha, ele atendeu. entramos. Seu Jorge não fazia mal a ninguém, mas nunca era visto, nem participava das coisas da rua, e não distribuía tranquilamente suas frutas.

Mas eu, no fundo, admirava Seu Jorge. Via-o pouco, mas desses momentos, admirava suas histórias, conquistas...criava um mundo de imaginação dentro de mim.

Com os meus amigos não foi diferente ao entrar pela casa rústica e madeirada, com uma sala contendo vitrola e até LPs recentes como Neil Diamond e Elton John. Mas nada chamava mais atenção do que sua parede vitoriosa: fotos, troféus, medalhas, distintivos (acho que era aquilo, que parece medalha de escoteiro) entre outros.

Seu Jorge, já com uma pequena bacia de jabuticaba nas mãos, nos entregou e voltou à sua parede. Pelo menos, por uma hora:

- Estão vendo aqui, meninos? Essa medalha foi do meu feito de honrar a prátia. Na minha época, eu fui o soldado que mais conseguiu méritos por isso. Uma vez, precisei enfrentar sozinho sete homens, SETE, e consegui mobilizar todos. Que lutador eu fui. Sabe? Não há mais guerreiros e soldados como antes, que lutava por amor aos outros, e essas medalhas são provas disso!

Finalizou a fala, pegando uma de suas centenas de estatuetas e começando a limpar. Todos da cidade sabiam do ritual da limpeza do "Cantinho da Vitória".

Enquanto Seu Jorge falava, minha cabeça abraçava aquelas palavras, que viravam imagens nítidas em minha mente. Ele, mesmo lá com seus 50 ou 60 anos, demonstrava tanta bravura que eu o imaginava em cima de um cavalo, igual ao santo que meu pai louvava: o São Jorge. Protegendo a todos.

Mas toda a minha imaginação foi por água abaixo quando Pedro, um dos meus amigos, indagou:

- Incrível sua história, Seu Jorge! E hoje, você luta?

- Não, meu pequeno garoto... estou aposentado já!

- E faz o que no seu dia a dia?

- Como assim, garoto?

- Desculpe, senhor... mas isso é uma história sua, do passado, que é incrível...

- Exatamente!

- Mas você ainda está vivo, não está? Então o que faz hoje para sua vida ser ainda assim, tão gloriosa?

A sala ficou em silêncio. Seu Jorge mudou logo a cara, e não demorou muito pra pedir que nos retirássemos.

Quando cheguei em casa, fiquei pensando o dia todo sobre o que Pedro disse. Ao mesmo tempo que, realmente, foi um momento crucial entre uma conversa com um senhor, comecei a refletir em quem era o Seu Jorge hoje.

Não o víamos na rua, ele não se cuidava muito e toda manhã mal falava bom-dia.

Hoje ele não era mais aquele lutador, soldado, que derrubada sete homens sozinho. Hoje era um senhor rabugento, que só tinha a admiração pelo o que ele foi, e não pelo o que era naquele exato momento. Como se ele já não tivesse mais aqui.

Se ele tivesse morto, ok, mas ele estava com 50, 60, e parecendo ter 80.

Quatro dias depois, foi visível ver como a fala de um garoto de 12 anos entrou na cabeça daquele ex-soldado: logo pela manhã, Seu Jorge estava na porta, distribuindo suas jabuticabas com um belo sorriso, e ainda conseguiu, mais tarde, ir fazer aula de yoga que tinha numa praça lá perto, junto de outros senhores e senhoras. Com o tempo, Seu Jorge contava uma história ou outra dos seus grandes feitos, mas o que fazia a garotada ficar em volta era quando preparava seu bolo de jabuticaba com cobertura de caramelo, fazendo a gente passar vontade e se deliciar horrores.

Logo, o espaço da parede do Seu Jorge cheia de méritos foi sendo colocados em caixas, indo para um quartinho da casa, mas tudo cuidadosamente. Para este lugar, um sofá grande foi posto, em que várias pessoas passaram por ele, vindo visitar e curtir a energia de Seu Jorge.

Hoje, com meus 45 anos, relembro disso toda vez que faço algo esplendoroso ou algo horripilante.

Isso pode fazer parte da minha história. Mas é só uma parte, não o meu todo.

Olhar para os grandes feitos realizados, sem ser hoje uma pessoa tão realizada assim, só me tornava um ser frustado.

Seu Jorge já foi para a lua. Mas, ao invés de imaginá-lo como o Santo guerreiro, o que guardo foi o teu sorriso, e penso que tem asas de anjo e distribui sua doçura por aí. Pois foi esse quem eu realmente conheci. Um grande herói, tanto quanto (ou até mais) que aquele que derrubou vários homens.

Sua história então foi escrita em um passado patriota, e construída no final com uma bela família, que era a nossa vizinhança.

De verdade?

Anos 80 foram incríveis, mas viver e intensificar o meu presente é muito mais.