Sorriso Carmim

Sem assunto e sem companhia no final de mais uma sexta-feira sufocante. Maria entra no primeiro bar que encontra após deixar seu local de trabalho, em Botafogo, com uma volumosa pasta repleta de papéis e um volumoso acúmulo de dúvidas na cabeça. Era comum levar trabalho para casa, levar bebida alcoólica à boca, era atitude rara.

Após sentar-se a uma mesa mais ou menos higienizada na área externa do bar, ainda arfando devido aos passos apressados, ela chamou o garçom e pediu uma caipirinha.

- Posso fazer uma sugestão? Disse sorridente o senhor de cabelos grisalhos e bigode ralo que prestava serviço ao bar há mais de uma década. Maria acenou desinteressada, mas afirmativamente.

- A caipirinha de morango, além de maravilhosa, é a oferta do dia. Está com preço promocional.

A moça concorda imediatamente, evitando perguntas ou decisões que exigissem muito esforço. Estava cansada. Emocionalmente cansada. Dos sapatos apertados, do trabalho estressante, do chefe cuspindo ordens e mais ordens, da vida que pesava como chumbo, como céu enegrecido prestes a desabar em um grande temporal.

Antes que a bebida fosse servida, um rapaz de belo sorriso e um reluzente brinco na orelha sentou-se, sem nenhuma cerimônia, na cadeira vazia à sua frente. Maria não estava disposta a conversar muito e nem a aturar cantada inconveniente, mas o sorriso claro e atrevido do moço fizeram com que ela se detivesse a olhar a companhia inoportuna por alguns instantes sem reação.

Ele olhou-a nos olhos. Desculpou-se superficialmente pelo gesto, arregaçou as mangas longas da camisa e ali ficou, monossilábico e aéreo, tanto quanto inadequado. Maria apenas respondia o necessário e pensava: Calma, Maria Lúcia. Não se importe com tão pouco. Aproveite o papo despretensioso para se distrair.

A bebida chegou enquanto Maria Lúcia checava as mensagens recebidas no celular. Agradeceu ao garçom sem olhar, e ao estender a mão em busca do copo, seus dedos brancos e longos encontraram-se com os dedos cheios de morenice do atrevido visitante que já havia bebido o primeiro gole da doçura vermelha e reluzente.

Nesse momento a moça olhou-o com ar de censura, porém, sem proferir palavra. Ela queria apenas esvaziar o porão dos pensamentos enquanto a música tocava ao fundo. Talvez canção repetida, cantada em qualquer bar e adequada a qualquer tom indiferente, para quem dedilha o violão e para quem a transforma em pano de fundo para conversa costumeira e para o gole habitual.

Maria, sem pensar em nada e apossando-se do copo, bebeu o néctar restante, enquanto, sem se despedir, o rapaz levantou-se e saiu do local que começava a encher de gente barulhenta e vazia. Quinze minutos depois, era Maria quem trocava o barulho da música, das conversas e da louça recolhida pelo barulho abafado da rua. Já na calçada, e sentindo-se mais relaxada, lembra do ocorrido, e com isso, de uma crendice: Quem bebe no mesmo copo de alguém descobre desse todos os seus segredos.

No mesmo instante, um menino magro e descalço passa correndo pela moça fazendo balançar sua bolsa e seus brincos. Ao olhar para a criança, outra coisa lhe chama a atenção. Uma carteira de couro negro caída junto ao meio fio. Terá sido fruto de algum assaltado e o meninote, na pressa, deixou cair? Abaixando-se, pegou a carteira delicadamente guardando-a na bolsa. Já não havia ninguém na rua e seria inútil procurar pelo dono.

Maria morava próximo ao local de trabalho e em pouco tempo, entrou em seu apartamento desejando o merecido banho e o sono reparador após mais uma semana de trabalho. Realizadas as aspirações primeiras, recostou-se e abriu a carteira encontrada. Suspirou ao dar conta que tinha em mão os segredos do visitante que, a contragosto tinha lhe oferecido companhia duas horas mais cedo. RG, cartões, contatos telefônicos, senhas para realização de serviços bancários, uma bela foto e até o rascunho de um bilhete apaixonado, e nunca entregue, endereçado a uma pessoa chamada Amanda.

Um pseudofruto como base de uma bebida saborosa e profética. Nas mãos de Maria os segredos mais relevantes de quem apenas lhe dedicou algumas impressões e sorrisos. Sabia agora quem era, onde morava além de sua profissão e seus afetos. Compartilhar o mesmo copo com alguém trouxe como consequência nova aproximação, agora consciente e inevitável. Um sorriso desconhecido e atrevido, agora tão íntimo. Uma vida bronzeada deixada nas distraídas e alvas mãos de Maria.