COLA DE QUIABENTO

A tecnologia tornou a vida tão veloz que as crianças de hoje não têm mais gosto por brincadeiras, destas que fazem escorrer suor, atiçar a imaginação e preencher de maneira saudável as deliciosas e necessárias horas ociosas da meninice. Mas, ainda que os pequeninos quisessem brincar, o mundo moderno já não oferece espaço. O progresso vem engolindo com voracidade os quintais e terrenos baldios, palcos das peraltices infantis de outrora. O crescimento vertical é uma das fortes características desta nova era. Não temos prédios altos como os das grandes metrópoles (e queira Deus que jamais tenhamos, para que minha saudade brejeira não cresça na mesma proporção), mas os terrenos centralizados estão cada vez mais escassos e disputa-se palmo a palmo os espaços restantes. Quintais estão sendo substituídos por áreas de serviço e o trânsito impede brincadeiras no meio da rua. Criança de hoje já não conhece vaga-lumes, não cata tanajuras depois das chuvas, não cutuca mutucas na areia, não conhece os cheiros, as formas, as texturas, os gostos e os sons do mato. Por isso, o tédio anda rondando quem ainda está trocando os dentes. As crianças estão experimentando um louco processo de adultização e, aos dez anos, já não têm mais meninice. Mostram-se enfastiadas e sempre sedentas de estímulos visuais e auditivos. Nada pode ser mais interessante que os jogos eletrônicos e os vídeos do YouTube. Vivi intensamente minha infância! Numa época em que as crianças do meu meio sonhavam, no máximo, em ter uma Monareta, aqueles patins da propaganda da camiseta Hering, um Dorminhoco ou uma Fofolete. Nunca tive brinquedos caros. Na verdade, nem tive muitos brinquedos! Não que eu não os desejasse. Sonhei muito em ter o Dorminhoco azul! Mas, nem por isso deixei de brincar. Antigamente a infância acontecia num universo muito particular regido pela inocência. Crianças, geralmente, não participavam das conversas dos adultos. Era falta de educação, falha imperdoável e punível, interromper e importunar os pais, enquanto estes tinham visitas ou conversavam casualmente com outro alguém do mundo adulto. Enquanto a gente grande destrinchava problemas, novidades, negócios, a vida alheia; a infância transbordava inocência nas cantigas folclóricas e nas brincadeiras que atravessaram séculos. Lugar de criança era na escola, no terreiro e no meio da rua, pulando corda e amarelinha; pintando o sete. Nossos brinquedos eram, quase todos, confeccionados por nossas criativas mãos. Qualquer “coisa besta” podia virar um grande invento e proporcionar momentos de pura adrenalina. A matéria-prima geralmente vinha do mato. A fruta de quiabento, planta espinhenta que crescia abundantemente formando cercas naturais, tinha um valor imensurável. Todas as crianças do meu tempo valiam-se da cola de quiabento para a construção dos brinquedos favoritos. A gosma fixava o papel nas tariscas de coqueiro ou nas lascas de compensado, dando forma aos surus (a gente dizia surucos) ou às pipas. Se achávamos palitos de picolés, era só prender, com a cola natural, nas extremidades, em lados opostos, os pedaços de papel. Com um espinho enorme e pontiagudo, da mesma planta, ou um preguinho, a gente fincava o palito enfeitado num bastão de miolo mole. Pronto! Surgia um cata-vento para alegrar a correria ladeira abaixo. Quiabento também colava figurinhas nos álbuns (ainda não haviam inventado figurinhas autoadesivas). A cola era útil até para os trabalhos escolares, embora já existisse Tenaz e Durex. Quando decidíamos brincar de fazendinha espetávamos os próprios espinhos do quiabento nos frutos, transformando-os em boizinhos. Mas, de quando em quando, durante a aquisição de “bois”, pisávamos, por azar, em emaranhados de espinhos, dos galhos secos que caíam. Era comum um estrepe varar a borracha das sandálias e penetrar impiedosamente na carne. Doía! O espinho é longo, do tamanho de uma agulha de costura. Dava um trabalhão extraí-lo! Mas, não traumatizava. E olha que, naquele tempo, Merthiolate ardia! E por falar em Havaianas... lembrei-me de mais uma forma de brincar. Chinelos gastos, recortados, transformavam-se em rodeiras para reforma e confecção de carrinhos. Também serviam como luvas de goleiro, naquelas peladas, onde jogavam os sem camisa contra os de camisa e as traves eram representadas por duas pedras. Borracha de pneu também tinha um valor incrível! Era divertido empurrar um pneu com o auxílio de dois cabos de vassoura. Também tinha o guiador, objeto feito de ferro retorcido e que servia para conduzir uma roda mais fina e menor. E os carrinhos de rolimã?! Quem sofria por não ter um skate? Outra coisa muito divertida era fazer bolinhas de sabão. Para isso, a gente só precisava de água, sabão, um copo qualquer e um talo de mamoneira. E se não havia mais nada para fazer na rua, no quintal ou no mato, a gente assistia na TV programas feitos especialmente para crianças; algo que a TV aberta já não está mais investindo. Sabe o que era bom, mas muito bom mesmo? Era tocar a campainha da casa dos outros e sair correndo.

Saudosa infância! Volta e meia eu volto aos meus verdes anos e constato que fui muito feliz tendo “muito pouco”.