A cabaninha

Era véspera de São João. Dona Cíntia já estava no seu horário de lanche, e dali algumas horas iria para casa, aproveitar os 3 dias de folga. Enquanto tirava da sua marmita um pão com manteiga pra tomar com chá, conversava com suas colegas de trabalho, que também descansavam do atendimento:

- Vai para alguma festa de São João, Cíntia?

- Ainda não sei... Sei que hoje vou arrumar a casa, preciso! Tá uma bagunça e as meninas chegam hoje... Se já não chegaram!

- Ah, suas filhas voltam então para casa?

- Sim. Andressa mandou mensagem hoje pela manhã, falando que achava que seu voo ia atrasar, até. Karina, como sempre, enrola pra responder...

- Esses jovens de hoje... Elas estão com quantos anos?

- Andressa, 32; Karina fez 29 dia 10 de junho agora.

- São mulheres já!

- Mulheres difíceis... Eternas meninas!

- Nossos filhos são eternas crianças, haha!

Volta ao trabalho. Cíntia sentia um peso nas costas. Torcia, no fundo, que as meninas saíssem hoje e ela pudesse ficar em casa, sozinha mais uma vez, vendo a sua novela com a Bolinha sentada ao lado. Bolinha era sua vira-lata, que quando as suas filhas trouxeram da rua, ela disse que nunca quis cachorro dentro de casa.

Ao abrir a garagem do carro, já veio o desânimo: viu o carro de Karina. Ela já chegou, e se ainda não pegou a Andressa no aeroporto.

Pensava agora na louça que não lavou ao sair de casa... Mas este pensamento parou em um instante, quando ouviu risadas vindo da sala.

Ao chegar lá, os sofás não existiam mais. Estavam cobertos em parte. As vassouras que ela usaria para limpar a casa estavam lá também, mas sendo usadas como suporte dos vários (e põe vários) edredons alinhados e suspensos no ar.

Um lençol vinha por cima de tudo, caindo pelo chão, fazendo um corte no meio. Neste corte, a cabeça de Karina.

- Oi, mãe!

- Karina Santos, que isso? Tá louca?

- Mãe chegou!

Surge então a cabeça da Andressa.

- O que vocês fizeram com minha sala???

- É uma cabaninha, mãe... Larga essa bolsa e vem aqui um minuto!

Cíntia soltou um ar forte pela boca, mas fez isso... Após ajoelhar, já começou a rir... Não sabia se era de desespero.

- Entra logo!

- Entrando...queria lembrá-las que fiz 60 este ano, a coluna já não responde aos atos.

Ao entrar, viu várias almofadas suas, inclusive as do seu quarto, ali no tapete da sala.

- Estávamos com saudade, mãe! Como foi seu dia?

- Foi bom, e vocês fizeram boa viagem? Achei que seu voo ia atrasar, Andressa!

- Não atrasou. E quando cheguei, Karina estava aqui. Resolvemos então fazer esta cabaninha!

- Você lembra, mãe, quando fazíamos?

Cíntia temia essa pergunta. Temia trazer todo aquele ar de lembrança que a cabaninha trazia. Ao olhar para as duas, ela não via mais uma Delegada da Polícia Federal, nem mais uma Professora de Canto Lírico da Universidade. Via suas duas garotinhas, que arrancavam cabeça de boneca e trocavam entre si. Lembrava daquele cheiro de shampoo que ficava no seu nariz, por quando as meninas iam dormir na sua cama, com medo de trovão. Lembrava da promessa da cabaninha: "nosso espaço de segredos e compartilhamentos, com amor e sem julgamentos!", acabou a dizer, em sintonia com suas filhas.

- Estávamos com saudade, mãe... Sei que você fica brava com isso, sempre ficou, mas daqui a gente vai arrumar tudo!

- Vamos ver um filme hoje? Além de compartilhar nosso dia a dia? Comprei bolo de milho, como você gosta!

- E deu até tempo de dar um banho na Bolinha... Ela tá na casinha dela agora descansando...

- Já, já soltamos a Bolinha para cá então, meninas. Muito bom ver vocês, Mamãe estava morrendo de saudade!

As suas filhas deitaram no seu colo. Dali foram altas conversas, desde Karina falar do seu casamento, dos preparativos, até da Andressa falar da reconciliação com Laura, sua namorada. Dali relembraram dos tempos de cabaninha, das brincadeiras embaixo dessa casa improvisada de edredons, cobertas e lençóis, das histórias que Andressa lia para Karina ficar calma antes de dormir, do dia que fizeram a cabaninha após o enterro do pai, dormindo todas juntas ali.

Após tanta conversa, Bolinha se juntou ao grupo. Teve pipoca, bolo de milho, abriu um buraco no teto da cabana para ficar visível a TV. E mais um vez, todas no colo de Cíntia, inclusive Bolinha.

O filme era lindo, mas não durou muito. Karina pegou num sono, Andressa "desmaiou", e Bolinha estava com as patas para cima.

Menos Cíntia. Ela agora rezava, acariciando os cabelos de seus anjos, com uma prece pela vida e saúde delas.

Apesar da bagunça de casa, Cíntia tinha sorte de ter as meninas-mulheres que ela mais amava nessa vida.

A cabaninha se estendeu por todo o feriado, e quando as meninas foram embora, Cíntia pediu para não desmontar. Insistiu nisso.

Com a casa vazia, Cíntia voltou a cabaninha, e junto de Bolinha, assistiu a mais um filme, deitada ao travesseiro e sentindo o cheiro doce e amável de suas pequenas.

Foi, para Cíntia, um feriado cheio de segredos e compartilhamentos, com amor e sem julgamentos, e isso valeu muito mais do que qualquer bagunça.