"O menino é o pai do homem"

Nossa natureza humana, sempre formada por ideologias desenvolvidas na mais tenra idade, nos guia pelos caminhos da vida. Algumas ruas são asfaltadas, retas e longas; outras, entretanto, são tortuosas e acabam no mais absoluto vazio. Não importa qual delas escolhamos, há uma relação bastante estreita entre a escolha e os valores de nossa formação. Afinal, reproduzimos o meio, e como oferecer o que não temos?

É claro que não obedeceremos às leis de trânsito se os responsáveis por nossa formação passavam em semáforos vermelhos, andavam pelos acostamentos quando havia tráfego intenso nas rodovias ou mesmo trafegavam em faixas exclusivas para ônibus.E também hoje a visão política estreitada, os achismos, é fruto do pensar em massa. Exemplo disso é José Milton, brasileiro, casado, pai de dois filhos adolescentes. Sua vida, pacata socialmente, não incluía grandes gastos com entretenimento. No máximo, uma cerveja com os amigos no bar da esquina toda sexta-feira. Cego, precisava do auxílio de um dos filhos para encontrar os companheiros de copo.

Trabalhava como funcionário público no tribunal regional da pequena cidade. Certa tarde, ao chegar no portão de casa, esperava-o Adailton, um dos que com ele bebia às sextas. Trazia nas mãos um convite para assistirem ao jogo do time da cidade contra um time da capital. José Milton, tranquilo, de falar manso, vibrou e aceitou prontamente. Combinaram tudo e despediram-se.

José Milton entrou e contou à mulher, animado, sobre o convite que aceitara. Ficou por ali, imaginando como seria. Finalmente iria ao estádio, lugar em que o pai jamais quisera levá-lo. Dizia sempre que era lugar para “macho”, e “macho que enxergava muito bem! Era lugar de guerra onde rivais iriam para combate”. E mesmo que José Milton reclamasse, o pai retrucava que o filho era “café com leite” por sua deficiência.

Chegara o dia de jogo. José vestiu-se e ficou aguardando o amigo que não demoraria a chegar. Ah, se o pai pudesse vê-lo! Saiu para esperar, já no portão, que Adaillton, seu bff (best friend forever) desde então, chegasse. Com ouvidos apuradíssimos, percebeu o carro se aproximar. Entrou e os dois partiram.

Já no jogo, ambiente tenso, uma discussão iniciou perto de onde estavam José Milton e o amigo. O bate-boca foi crescendo e parecia consumir os torcedores no entorno. Garrafas, vazias e cheias, voavam e acertavam as cabeças em luta. Havia muita confusão no setor. Os amigos tentaram sem sucesso sair dali. Gritaria, hostilidade, agressão, um show de violência do qual nosso protagonista acabou por tomar parte.

José Milton nem ouviu o jogo. Mesmo sem enxergar e sem querer, foi para a luta. Entrou na guerra sem ter planejado estratégias. Lembrou-se do pai, ele tinha razão, mas José não era café com leite. Geralmente cordial e manso, entendeu que tinha dentro de si uma fera desconhecida. Bicho feroz que entrara em seu peito quando ainda era bem pequeno e ficava angustiado com as palavras que o punham tão para baixo: “o estádio é lugar para macho”!

Bateu sem entender em quem. Sobreviveu. Estava ferido, com o corpo dolorido por ter apanhado e muito, mas em paz por não ter desapontado a memória do pai. Poderia ter escolhido não participar do combate na arquibancada. Poderia ter pensado num modo para sair de onde estava e carregar consigo o amigo com a desculpa de que não podia ver. Poderia ter pensado...Mas a caixa, igual àquela dos pássaros, encerrou sua humanidade e bom senso, e ele, preso que estava em sua formatação de infância e energia do momento, não repensou, não questionou… simplesmente foi...seguiu, com seus instintos, a massa sem saber por que e para que...foram anos de reclusão na mais absoluta penumbra que estouraram naquele momento.

A família nada entendeu. “José é um bicho tão manso e tranquilo, como foi se meter em uma peleja dessas?” Descarregou a mulher, enxugando a água que escorria do punhado de gelo nos hematomas causados pelas pancadas..

Não havia explicação. Somos frágeis quando solitários, mas em bando, somos o bando e chega! Não se pode explicar. Mais a mais, ainda há um agravante: somos frutos da nossa árvore de valores. É como dizia Machado “O menino é o pai do homem” e pronto!

Em política dá-se o mesmo processo. Reproduzimos as visões, muitas vezes, castradoras dos valores familiares, cerceadoras das escolas e passivas, em sua acepção mais negativa, dos que nos cercam.

Não há o que explicar; as ruas escolhidas serão largas ou estreitas, retas ou tortuosas segundo a soma dos diferentes momentos e das diferentes pessoas em nossas vidas. Só há um caminho para reprogramar essa formatação: o conhecimento. Mas ele realmente dá muito trabalho, e vivemos gerações que fazem brinde à preguiça!

Sol Galeano
Enviado por Sol Galeano em 14/05/2018
Reeditado em 14/04/2020
Código do texto: T6335970
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