Tempos bem outros

A água encanada era uma grande bênção. Assim aprendemos a pensar, porque no meio de tantas carências qualquer migalha era uma dádiva. E dávamos graças porque aprendêramos com os ancestrais que a gratidão origina novas benesses. Mas o benefício vinha de um poço artesiano que nem sempre podia com as necessidades da população, tinha também o problema da bomba hidráulica que o excesso de função levava a frequentes enguiços de demorada reparação. Por isso, as águas do Ribeirão Fartura eram de muita serventia, embora às vezes se tornasse imprópria até mesmo para a lavagem da roupa, em decorrência das cheias ou da safra da mandioca, e esta última causa merece algumas linhas.

Uma das atividades econômicas do município era a fabricação de polvilho embora o ramo calçadista já predominasse. Lembro-me bem de uma fábrica que eu frequentava em companhia de meu pai, na qual ele prestava serviços periódicos operando o ralo, denominação empregada ao ralador de mandioca. A fábrica pertencia ao senhor Antônio Amaral de Lacerda, o Tõezinho Bento, e situava-se nos limites já da povoação na rua que já fora “das Baratas” e, creio, por aquele tempo já devia ter recebido o nome de Dr. Jacinto Moreira Filho. Só alguns anos mais tarde é que a cidade espicharia para oeste com o surgimento dos bairros São Marcos, São Sebastião e demais.

O polvilho doce é obtido da lavagem da massa ralada da mandioca e posterior decantação da água da lavagem, para separar o amido de fibras, de material protéico e de impurezas. É submetido à secagem, depois da decantação. Essa secagem era feita em compridos jiraus com estrutura de madeira, forrados com esteiras de bambu, que no caso daquela fábrica em particular, eram tecidas por meu pai. Posso ver-me menino brincando debaixo daqueles jiraus enquanto meu pai trabalhava na manutenção dos mesmos. Dali daquele enorme pátio avistava-se, subindo a serra em direção à Pedreira, uma rua descalça ao longo da qual havia ainda poucas casas, pequenas, simples, com janelas e portas de madeira e cobertura de telhas francesas. Tratava-se da Rua Duque de Caxias.

As fábricas de polvilho vez ou outra despejavam nos leitos dos ribeirões a água resultante da lavagem da massa de mandioca brava, o que deixava os peixes atordoados e aí era cair na água com peneiras e cestos para recolher o máximo possível de carás, piabas e pequenos bagres, os mais suscetíveis à água tóxica, que apesar desses frequentes ataques existiam abundantemente. Era “mistura” garantida para dias. Limpos, desviscerados e salgados, os peixinhos eram postos a secar. Era o meio de conservá-los, porque geladeira naquele tempo, só em sonhos e nas casas dos ricos.

A água encanada que chegava à nossa casa era armazenada num tambor de 200 litros, e como só raramente chegava às casas situadas no “ruado de cima”, os moradores dos pontos mais altos recorriam aos da Rua da Várgem com latas e potes que pela força da necessidade aprendiam a equilibrar na cabeça sobre uma rodilha de tecido. A gente do “ruado de baixo” se solidarizava com alegria. O compartilhamento das precariedades estreitava laços. Muitas relações de compadrio nasceram daquelas situações de escassez.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/04/2018
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